A Inteligência Artificial (IA) está em praticamente tudo que você usa: nos algoritmos das mídias sociais, nas ferramentas que facilitam o seu trabalho, naquelas propagandas irritantes que pulam no seu dispositivo e até no e-mail “gratuito”.
A IA não age sozinha. Como temos visto por aí, ela pode ser a mocinha ou vilã e tem sempre uma identidade por trás, de alguma forma, cercada por dúvidas e questões éticas. Como exemplo, o vídeo da campanha publicitária para vender carro com Maria Rita e Elis Regina (1945-1982), cujo rosto foi recriado por IA e, juntas, cantam “Como Nossos Pais”. Espera-se que Elis tenha mais paz no mundo espiritual do que no virtual… Um perfil no Instagram (@elisregina.ai) está criando várias versões de músicas contemporâneas com uma simulação da sua voz. É o caso da última música dos Beatles, produzida com a ajuda da IA, lançada na quinta (02/11): a faixa “Now and Then” foi gravada em demo no final dos anos 70 por John Lennon, mas ganhou arranjo de Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr nos anos 90. A tecnologia da época não foi capaz de separar a voz de Lennon e o piano dos ruídos da gravação, e a música foi descartada. Hoje, porém, a tarefa foi possível com os recursos da WingNut Films, que usou a IA.
O lado sombrio é que tem assustado e prejudicado muita gente. No fim de outubro, a atriz Isis Valverde registrou boletim de ocorrência na Delegacia de Repressão a Crimes Cibernéticos do Rio, depois de ter sido avisada sobre nudes circulando na Internet. Eram modificações feitas para criar montagens com base em arquivos de imagens reais, de uma forma tão sofisticada que pôde enganar até os mais detalhistas. Outras que passaram por isso também foram as atrizes Gal Gadot, Emma Watson e Scarlett Johansson.
Trazendo o assunto mais para perto, esta semana tivemos o caso do Colégio Santo Agostinho Barra, em que alunos produziram “nudes fakes” de mais ou menos 20 adolescentes meninas.
E nem citamos o antes e depois do ChatGPT (aquele que cria textos elaborados baseados em IA) ou outros apps e ferramentas para manipular fotos e vídeos. Para entender um pouco mais desse mundo nem tão novo assim, conversamos sobre o assunto com Thássius Veloso, jornalista especialista em tecnologia e inovação, editor do “Tecnoblog” e comentarista da Globonews.
Para nós, leigos, o que é a IA e como ela atua hoje em nossa vida de forma prática?
O conceito de inteligência artificial é antigo: data dos anos 1930, quando o matemático Alan Turing desenvolveu uma máquina capaz de realizar limitados cálculos. Esse campo evoluiu muito com a informática e a Internet. Hoje em dia, dá para dizer que inteligência artificial é quando o dispositivo eletrônico compreende e responde aos seus estímulos individuais. Tome como exemplo as caixinhas de som com assistente virtual que conseguem responder à previsão do tempo.
A IA é uma ferramenta muito útil, mas não é inteligente. Acredita, como muitos acham, que seja uma ameaça a determinadas profissões? (Um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID e do McKinsey Global Institute estima que a automação poderia afetar até 50% dos empregos até 2040).
Sem dúvida. Diversos organismos internacionais já levantaram o ponto de que milhões de pessoas poderão ficar sem emprego da noite para o dia. Esse processo leva tempo, e o ser humano tem a capacidade de se adaptar. No entanto, a revolução iniciada no ano passado, com o surgimento do ChatGPT, tem elevado os receios de que a gente não crie planos para lidar com a IA na velocidade adequada. Novas profissões também vão surgir, mas talvez não sejam suficientes para repor as vagas encerradas em virtude do uso de inteligência artificial.
E tem o outro lado… Você disse que escuta muito em congressos a pergunta “de que forma meu negócio vai tirar proveito da inteligência artificial?” Aonde a IA já chegou no dia a dia?
Ela está presente na vida das empresas, mas de maneira muito desordenada. São poucas as organizações com planos bem estruturados para lidar com as ferramentas de inteligência artificial, com exceção das próprias desenvolvedoras de TI. De que forma a IA pode ajudar a estratégia de um escritório de contabilidade? Ainda é difícil dizer, mas já tem contador individualmente adaptando comandos de IA para agilizar a própria rotina. Existe todo um desconhecido sobre os limites disso.
No seu ponto de vista, quais as profissões do futuro se a pessoa quiser investir nesse setor?
Certamente a indústria de tecnologia irá buscar profissionais que compreendam e possam se aprofundar no modo eletrônico de pensar, ou seja, o algoritmo que faz funcionar a inteligência artificial. Acredito que haverá oportunidades para trabalhadores multidisciplinares que consigam ver o todo e resolver problemas de proteção de dados, privacidade ou mitigação de erros, por exemplo.
Dos recursos que você testou ou viu em congressos de IA, qual o que mais o surpreendeu e por quê?
A aplicação da IA na Medicina tem um potencial gigantesco porque, hoje em dia, é caro e difícil conseguir tratamento médico de qualidade. Muitas empresas estão pesquisando esse campo – já existem ferramentas de IA que auxiliam, por exemplo, a compreender exames de imagem. A taxa de assertividade tem sido altíssima: daria para colocar robôs bem preparados para fazer triagens ou anotar as queixas das pessoas antes de encaminhá-las para um médico de carne e osso. No futuro, apps de celular com algoritmos sofisticados poderão encontrar problemas oculares a partir da câmera de selfie do telefone. Já pensou? Isso é disruptivo! Só faço a ressalva de que é importante ter sistemas bem testados e jamais substituir completamente os demais profissionais de saúde, que conseguem acolher e ver o contexto dos sintomas.
A IA tem seu lado mocinha e vilã… Sobre o segundo, está o maior problema em várias discussões, sejam éticas, sejam jurídicas etc… Acredito que as leis não acompanham a velocidade da tecnologia. Citando dois casos recentes, tivemos a Elis Regina, o caso do Colégio Santo Agostinho, da Isis etc. Tem como evitar esse tipo de acesso para essas intenções?
Está faltando um freio de arrumação nesse setor porque a coisa andou rápido demais, se desenvolveu muito, e pouca gente consegue vislumbrar o que pode vir pela frente. A gente precisa ter em mente que desenvolver e manter recursos de IA custa muito caro; então grandes empresas provavelmente irão prosperar nesse campo. Eu acredito que elas deverão criar limites sobre imagens, textos e outras mídias geradas pela IA. As gigantes do setor dizem que estão em busca dessas respostas, mas a lógica comercial talvez as impeça de avançar mais na discussão. Também será necessária muita educação, sobretudo com crianças e jovens, para que eles compreendam os efeitos do que é gerado pela inteligência artificial. Não podemos demonizar a ferramenta já que ela, por si só, não criou aquelas imagens. Foram pessoas de carne e osso que colocaram os comandos na máquina. Como toda nova tecnologia, é bem provável que a gente passe por alguns solavancos até que todos compreendam as implicações do uso de IA.
Nesse sentido, qual o futuro da IA, já que qualquer pessoa que entenda de TI e tenha acesso a um aparelho ou ferramenta de última geração pode fazer loucuras?
São grandes as chances de que os recursos com inteligência artificial façam parte constante da nossa vida, seja para compreender nossos hábitos de forma silenciosa, seja para nos ajudar quando solicitamos alguma coisa. Daqui a pouco, a gente nem sequer vai bater tanto nessa tecla de IA, já que estará espalhada por tudo..
O Brasil está muito atrasado nessa área?
As grandes empresas de tecnologia fornecem plataformas de IA para o Brasil. O consumo das ferramentas existe e tende a aumentar bastante nos próximos anos, visto que uma das principais promessas é de maior produtividade. Qual organização abriria mão de ter mais eficiência? Por outro lado, a pesquisa e o desenvolvimento de IA não me parecem ser tão pujantes quanto no Vale do Silício. Até temos iniciativas de acadêmicos para estudar o assunto e de empresários para implementar funções com IA desenvolvidas em território nacional. No entanto, aquelas grandes disrupções que viram manchete ainda são importadas de fora.
Onde você acha que a tecnologia estará na próxima década?
Nós estamos à beira de uma revolução. Se ela será boa ou ruim, não sei dizer, mas o fato é que, nesses últimos 30, 40 anos, passamos por alguns pontos de virada relacionados à tecnologia. O primeiro deles foi a criação da Internet; o segundo, o smartphone como conhecemos hoje, um fenômeno com pouco mais de 15 anos. A inteligência artificial tem tudo para produzir um impacto igual ou maior do que esses outros dois casos que eu mencionei. Alguns livros de ficção científica imaginam um futuro em que um cérebro eletrônico altamente inteligente dita os rumos da sociedade e toma decisões. Não me parece ser o caso (e eu espero estar certo nessa aposta!). A IA continuará coletando dados, cumprindo instruções e eventualmente sugerindo uma coisinha ou outra.
Por Dani Barbi