Margarida Flores vive só, desde a morte da mãe, na mesma casa onde nasceu e cresceu. Quando a empregada tira férias, é difícil demais atravessar mais um dia. Com muito humor e a melhor ironia, o conto “Um Dia a Menos”, de Clarice Lispector (1920-1977), é encenado por Ana Beatriz Nogueira na adaptação de Leonardo Netto, em nova temporada a partir do dia 15 de novembro, às 20h, no Teatro das Artes, no Shopping da Gávea, até 22 de dezembro, sempre às quartas-feiras. Depois da apresentação, a atriz — e que atriz! — conversa sobre a história com quem quiser ficar.
O solo estreou no Rio, em 2019, dois meses antes da pandemia; desde então, já fez temporadas no país. “É sobre uma mulher “quarentenada”, quando a gente nem conhecia esse termo. Margarida vive uma espécie de paralisia interna, tão presente por aí. É como se falasse sobre a não vida, sobre pessoas, jovens ou velhas, que estão aqui, mas não conseguem dar um passo adiante. O humor é presente e provoca uma identificação com esse lado patético da vida. É de uma humanidade imensa. Quem nunca passou por isso?”, diz Ana.
E como surgiu? “Eu tinha vontade de representar coisas da Clarice há muitos anos, porque tudo é muito bom. Conversando com o Leonardo, ele sugeriu o conto que eu não conhecia. Estou sempre procurando algo que fazer no palco, meu estado permanente. São muitas coisas boas pra fazer. A questão é escolher e tornar real de fato. E assim foi com Clarice”, conta.
É o terceiro monólogo da extensa carreira de quase 40 anos: uma dezena de filmes, 29 trabalhos na TV e outras 17 peças de teatro. Ela costuma dizer que faz “stand up book”, ou seja, leva livros praticamente completos para o palco. “São todos os solos adaptações de livros: ‘Tudo o que eu queria te dizer’, de Martha Medeiros, e ‘Um pai – Puzzle’, do livro ‘Un père – Puzzle’, de Sibylle Lacan, filha do psicanalista Jacques Lacan. Se você não conhece o conto ou o livro, é uma oportunidade de lermos juntas”, diz.
Recentemente, Ana Beatriz esteve no ar, na novela “Todas as Flores”, de João Emanuel Carneiro, na TV Globo, como Guiomar, “assassinada” no 14º capítulo, para tristeza dos espectadores que amavam a personagem. “Nunca tinha feito nada do João. Recebi muitas manifestações carinhosas do público; é muito bom deixar saudade. Não sei se estou na próxima novela dele, mas eu adoraria, e ele sabe disso. Já me convidei”, diz ela.
Em janeiro de 2024, Ana Beatriz volta com a peça “Sra. Klein”, com Natália Lage e Kika Kalache, no mesmo Teatro das Artes, e continua contratada da Globo. “Aguardo o que meu patrão quiser que eu faça. Permaneço contratada, graças a Deus, e sempre disposta”.
Leia sua entrevista, não podemos abrir mão de um-perfil-fala-o-que-pensa.
UMA LOUCURA: Uma só? (rsrsrsrs). Estou pensando aqui o que hoje em dia não é loucura… Uma delas é acreditar em cada loucura que invento e tornar viável as coisas que invento. Todas as minhas últimas peças, com exceção de “Sra. Klein”, foram feitas com meus próprios recursos. Por isso, quando a gente contextualiza e acha que é loucura, a gente não faz. A loucura é você não achar que é loucura e fazer.
UMA ROUBADA: Do jeito que o mundo está, essa resposta é muito ampla, mas fico como procurar vaga de carro no Rio: impossível!
UMA IDEIA FIXA: Fazer teatro. Acham que comecei com cinema (“Vera”, 1987, aos 19 anos, o que rendeu o Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim), quando fui apresentada a um público maior. Mas comecei mesmo foi em 1984, em “Galileu: uma nova estrela no céu”, dirigido por Anselmo Vasconcellos, com 64 atores, no Planetário da Gávea. Eu também estava fazendo outras coisas. Bem no início de carreira, entrei no teatro, sentei numa roda, dei boa-noite. E só perceberam quando eu já estava em cena.
UM PORRE: Dançar bolero com irmão em festa. Esse tipo de coisinha…
UMA FRUSTRAÇÃO: É tudo uma? Difícil… Mas foi ter economizado Veneza. Toda vez que ia à Itália, cismava que deixaria Veneza só para quando eu estivesse apaixonada. Uma fantasia, né? E fui muitas vezes à Itália e nunca passei em Veneza, que deve afundar brevemente… E eu não fui ainda. Estou economizando Veneza há anos, mas vou parar com isso. Já estou determinada: vou a Veneza! Talvez seja uma frustração eu finalmente chegar a Veneza.
UM APAGÃO: Um apagão foi a primeira dor de amor — eu sei com quem foi, onde foi, tudo. O final desse primeiro amor é como um apagão, mesmo porque é uma coisa tão maravilhosa!… Durou quatro anos, eu tinha 18. Foi marcante porque a gente é marinheiro de primeira viagem e não conhece muita coisa.
UMA SÍNDROME: Tenho a síndrome da comilança noturna. Estou inventando, mas é essa. Se eu souber que tem uma coisa maravilhosa na geladeira, sou capaz de ir sonâmbula às 3 da manhã. Vou ser sincera: eu tenho fome todo dia. Tenho fome.com. Fome é uma palavra forte; vamos dizer que eu vivo procurando uma coisinha que possa comer. É compulsão de comer coisinhas gostosas à noite.
UM MEDO: Tem uma frase em que Clarice diz que “depois do medo, vem o mundo”. Então, o medo não tem protagonismo para mim. Tive diagnósticos (convive com esclerose múltipla há 14 anos e descobriu um câncer no pulmão, no ano passado, retirado em estágio inicial). Você nasce, cresce etc. e aprende a palavra diagnóstico, assim como as outras. E são só diagnósticos. Tudo o que foi medo, veio tanta coisa depois, mundos e mundos. Sinto medo quando não tenho fé. Medo está relacionado à falta de fé, e fé é o que não me falta.
UM DEFEITO: Defeito é se apaixonar primeiro e conhecer depois. Muita gente deve se identificar, pois é essa a ordem louca dos acontecimentos. Paixão é o tipinho da coisa que, na maturidade, não muda nada, você continua se apaixonando antes e conhecendo depois. Como você leva isso através dos anos, é que muda. Mas esse acontecimento se dá — é algo que chega, e você não acompanha a chegada.
UM DESPRAZER: Me lembra uma coisa desgostosa. Desgosto seriam as pessoas de que a gente tem que abrir mão. Estou muito poética… Espera… Um dissabor… É contrário do prazer, e o desprazer é uma “desamizade”. Estou inventando palavra de novo, mas é conhecer o outro, fazer um amigo, ter esse prazer e depois acontecer o desencontro, que é um desprazer, uma desilusão: quando você aposta errado em alguma relação, uma amizade. Como dizia o poeta, “a vida é a arte do encontro embora haja tantos desencontros”. Uma palavra pode ter milhões ou nenhum significado. Meu Deus, estou criando poemas!… Eu devia ter me alimentado melhor antes da entrevista (risos).
UM INSUCESSO: Me dispor a consertar qualquer coisa de casa: eu até troco a lâmpada, tenho boa vontade, mas, até chegar lá, tem a escada, a subida… São muitas coisas que podem dar errado. Eu sou uma pessoa que fica presa na maçaneta — tirei todas de casa, coloquei portas de correr. Sou distraída e, em casa, ficamos muito à vontade. Em todos os lugares, fico presa em maçaneta, o que acaba com qualquer glamour de uma pessoa. Se você tiver fazendo um charme para alguém, a maçaneta destrói todos os seus planos. Tenho falta de talento para o glamour. Eu fiz um box no banheiro para ver a vista da mata; então pedi que colocassem um vidro jateado na altura do ombro, pra poder ver pela parte de cima, mas eu só esqueci que era míope, então tenho que tomar banho de óculos para enxergar qualquer verde. Não dá…. É o tipo de detalhe que atrapalha o glamour. Meu box é o exemplo de insucesso do lar.
UM IMPULSO: Sou toda impulso. Tenho impulso de impulsos.
UMA PARANOIA: Estar sendo vigiada por um buraco de fechadura, você sendo vigiada onde não quer. É alguém olhar para algo seu no momento em que você não gostaria. Sou uma pessoa pública controversa; seria péssima na carreira de celebridade. Acho que um paparazzi ficaria deprimido comigo: ou eu aceno, ou faço o símbolo de paz e amor, uma candura… O máximo é me pegar amassada e descabelada, porque eu sou muito caseira. Eu não gosto de dar entrevistas para revistas porque não tenho muito o que falar da minha vida pessoal — acho que as coisinhas da gente são da gente. Eu gosto de ser atriz. Ponto. E também quando o outro quer te modificar: é tão bom termos diferenças, né? A gente poder, cada um ser do seu jeitinho, e isso ser respeitado. É muito bom.
Foto: Lúcio Luna