A Laïs Mendes Pimentel (roteirista, escritora, professora, locutora, podcaster, astróloga, mãe do Xico, amiga do Gabeh e praticante de ioga — porque só estando muito zen pra gerenciar tudo isso) me mandou notícias de estudos feitos em Harvard sobre sonhos dos cães.
Eles sonhariam como nós, com representações das experiências diárias. E adivinha quem deve estar lá, por trás daqueles olhinhos semicerrados, enquanto se aninham nas patas de Morfeu?
Exatamente: eu, você — dono, pai, tutor, como quer que se chame o ser devotado que dá banho, faz cafuné, cede sofá, escova pelo, bota ração, troca água, cata cocô e não entende como pode ser amado tão incondicionalmente.
Enquanto, para nós, ter uma noite de cão é não conseguir domir com o barulho do vizinho, a ameaça do Freddy Krueger, para ele, noite de cão é estar ao seu lado, aos seus pés, buscando contato visual quando quer passear, abanando o rabo para dizer que te ama (ou, não nos iludamos, para dizer que quer passear), voltando feliz com a bolinha na boca (sem entender como você, aparentemente tão esperto, se entretém tanto com isso).
Lula Queiroga e Pedro Luiz não precisaram esperar que Harvard fizesse essa descoberta. Na canção “Noite severina”, cantaram: “Pedras sonhando pó de mina / Pedras sonhando britadeiras / Cada ser tem sonhos à sua maneira”.
Tudo que tem cérebro sonha. O sonho é o óleo desse motor, o scandisk desse HD, o ar quente desse balão. Pássaros hão de sonhar alturas e minhocas, peixes hão de sonhar minhocas e correntezas — minhocas, correntezas e alturas jamais saberão o que é cérebro, sonho, pesadelo.
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Polvos mudam de cor quando sonham – talvez se camuflando nas paisagens oníricas que frequentam, submersos. E como sonham! Afinal, têm nove cérebros – o central e uma filial em cada tentáculo.
Imagino a trabalheira de ser o analista de um cefalópode octópode:
– Doutor, esta noite tive de novo aquele sonho do arroz com brócolis.
– Esses sonhos são produções do inconsciente, que tomam emprestados cenas e afetos da vida em vigília, e os transformam, por meio dos mecanismos do inconsciente, em cenas passíveis de operar como realização de desej…
– Mas tive também aquele em que eu voava…
– Esse está ligado a momentos felizes e oportunidades de crescimento e indica que existe uma vontade de realizar algum desej…
– … e também sonhei que estava pelado.
– Isso abre margem para diversas interpretações, e pode ser um sinal de que você talvez esteja se expondo demais em situações que demandam maior discrição. Vejo nisso um desej…
– E que minha rádula tinha caído.
– Sua o quê? (Esse analista era do tipo que presta atenção ao que o paciente fala.)
– Rádula. Como não tenho dente, sonho é que minha rádula caiu.
– Ah. (Pausa) Sonhar com a perda da rádula significa… (mais uma pausa) … que você pode estar preocupado em perder algo importante, o que encobre um desej…
– … e que eu estou caindo.
– Aí nós temos uma fantasia de perda de controle, de desamparo, que evidencia um desej…
— Mas não só eu: o meu cabelo caía também.
O analista analisa, por cima dos óculos, a calva lustrosa do paciente.
– É aquele seu velho medo de envelhecer, de se sentir menos atraente. E revela um desej…
– E teve um sonho erótico, com uma lula, uma ostra, uma lagosta e uma cascata de camarões. A gente estava em Noronha, ou numa paella, sei lá, aí chegava um tubarão…
– Bem, aí nós temos um clássico desej…
– Ah, e o sonho em que estou sendo perseguido. Acho que pela Morte.
– Esse não era o mesmo sonho do arroz de brócolis?
– Não, naquele era com chef de cozinha. Aliás, 60 chefs de cozinha. Todos eles tatuados. E com sotaque francês.
– Sessenta? Então pode fazer uma fezinha no jacaré. Vai dar na cabeça.
Na sessão seguinte, o analista, intrigado, perguntará:
– Estranho. Na semana passada foram só oito sonhos. Será que você está reprimindo algum desej…
– Não. É que um cérebro número 9 tava com insônia. Esse tentáculo tem tido umas noites de cão…