1.
Num universo paralelo, Leonardo da Vinci passava em frente ao Palácio de Fontainebleau quando resolveu entrar e dar uma palavrinha com o rei Francisco I.
Recebido no salão principal, conversou amenidades com o monarca (“E esse tempo, hein?”, “Como a princesa Carlota cresceu!”, “Não se fazem mais petit fours como antigamente”), disse que precisava ir ao toalete e, passando pela galeria, sacou um pincel que levava escondido na algibeira e pintou uma covinha na Mona Lisa.
Para disfarçar, foi até o lavabo, deu a descarga e voltou ao salão, enxugando as mãos nas meias-calças.
– Nossa! Quase quatro da tarde. A essa hora o trânsito fica horrível no sentido de Amboise. Arrivederci, quer dizer, adieu!
Sua majestade não entendeu nada (“Artistas… Bah!”), mas, já na carruagem, Leonardo suspirou:
– Pronto, agora sim.
Sua obra estava finalizada.
2.
Num universo perpendicular, Ludwig van Beethoven acordou certa noite, incomodado com os roncos da amante, Elise.
Ia dar-lhe um cutucão quando percebeu que, caramba!, tinha recuperado a audição.
Ainda de ceroulas, correu para o piano, sobre o qual repousava, inconclusa, a partitura de mais uma sinfonia – no caso, a nona.
Tocou-a com vigor inaudito (para desespero do vizinho de baixo, porque já eram três da madrugada) até o ponto em que a deixara, e estava tão feliz que incluiu uma ode à alegria.
– Pronto, agora sim!
Voltou a dormir e acordou tão surdo quanto antes. Mas pelo menos a nona não ficou inacabada.
3.
Num universo tangente, William Shakespeare tentava desesperadamente concluir uma peça, mas não conseguia se concentrar, com os gêmeos Hamnet e Judith brigando por causa de um alfarrábio de colorir.
A história era promissora: um jovem casal tem seus planos amorosos frustrados devido à polarização ideológica envolvendo as respectivas famílias. Só que a trama dava voltas e nada de ele encontrar uma terceira via para Romeu Montecchio e Julieta Capuleto. E as crianças não davam sossego:
– Daddy, Hammet puxou meu cabelo!
– Mommy, Judith não quer me dar o lápis de cera!
A mulher, Anne, não podia ajudar, ocupada que estava em manter os credores do lado de fora.
– Daddy, Hammet me chamou de feia!
– Foi ela quem começou!
“Eu vou matar esses dois!”, pensou William. E teve um estalo.
Pronto, agora sim. Sua obra estava completa.
4.
Neste universo, Chico Buarque saiu do banho, de roupão; passou em frente à janela, olhou o mar do Leblon, respirou a brisa das cinco da tarde e resolveu trocar “vida” por “sina” na letra de “Beatriz”.
– “Será que é divina / A sina da atriz”, cantarolou.
Pronto, agora sim. Sua obra estava consumada.