Em todos os canais de streaming, me deparo com um tipo de preconceito contra o qual nenhuma milícia identitária voltou sua artilharia
Como um fungo diante de um formulário em que só há as opções “Animal” e “Vegetal”, ou um liberal anticorrupção num eventual segundo turno entre Lula e Bolsonaro, só me são apresentadas as alternativas “Adulto” e “Criança” — ou, pior!, “Kids”.
Será que esses canais não sabem que há adolescentes e idosos, com necessidades lúdicas bem específicas? E também — caso em que me incluo — os que não são nem crianças, nem adolescentes, nem adultos, nem idosos, mas transetaristas?
Neste 31 de julho de 2022 completo 63 anos, 3 meses e 9 dias – ou cerca de 554.664 horas de voo solo (sem brevê, e já operando por instrumentos). Tecnicamente, idoso – com direito a meia-entrada no cinema e atendimento grosseiro preferencial em bancos e supermercados.
Não sou mais criança a ponto de saber tudo, mas outro dia me peguei maratonando desenhos da Pantera Cor-de-Rosa – com direito a cantarolar tarantarã tarã tarantarantarã tarantarãããã. Quem assistia era o meu eu de 10 ou 11 anos, que só não viu também Capitão Escarlate porque parece não estar disponível em lugar nenhum.
O adolescente que habita em mim queria assistir às pornochanchadas dos anos 70, mas o neopuritanismo do século 21 não tem senso de humor – e perdeu a sensibilidade para os enredos metalinguísticos e para as interpretações off-Hollywood de Helena Ramos, Adele Fátima, Rossana Ghessa, David Cardoso. Devo ainda ter, em alguma gaveta, as carteirinhas de estudante com idade falsificada e que me permitiam ver, aos 15, 16 anos, não apenas os filmes impróprios, mas também os proibidos e os rigorosamente proibidos. Procuro o iconezinho de “Adolescente” — ou, vá lá, “Teen” — e não tem.
Adulto, eu? Sem chance. Adultos são os outros. Os que sabem o que cantar, como andar, aonde ir, o que dizer, o que calar. Os que — dependendo do gênero — gostam de filmes com explosões ou passados na Toscana. O quarentão que já fui gostava de Cronenberg, dos irmãos Coen, do Peter Greenaway, do Almodóvar quando ele ainda era engraçado, do Woody Allen mesmo quando já tinha ficado sério. Nada disso deve estar na rubrica “Adulto”.
E para “Idoso”, o que seria? “As neves do Kilimanjaro”, “Psicose”, Frank Capra, Murnau?
Não, os canais de streaming não sabem o que é estar diante de uma tela excludente, que só oferece opções para o que você já não é e para o que nunca chegou a ser. Eu sou uma metamorfose etária ambulante. Que um dia quer se lembrar de que cara tinha a Adriana Prieto, no dia seguinte procura saber quando sai a quarta temporada de “The boys”.
Talvez faça uma petição online para que Netflix, Globoplay, Amazon Prime e HBO criem um ícone CKATAI+ (Crianças, Kids, Adolescentes, Teens, Adultos, Idosos +). Esse + serei eu.
Pensando bem, melhor trocar o + por ∑. E torcer para que incluam no catálogo o National Kid e todos os filmes com o Vittorio Gassman. Além das pornochanchadas, claro. Que talvez não tenham mais a mesma graça se não for preciso apresentar carteirinha falsa.