Meu ofício é vender livros. Tenho feito isso, junto com minha família, há 43 anos, e acho que aprendi uma coisa ou outra sobre esse assunto. Vendemos livros em um espaço aconchegante, com boa música entremeada por um necessário silêncio, que desperta nos seus frequentadores uma enorme vontade de esquecer a vida lá fora. Por isso, passam longos períodos percorrendo os corredores daqui, enquanto saboreiam com os olhos as capas dos volumes e sentem o cheiro do papel das edições novas ou até mesmo daquelas já desgastadas pelo tempo. Esse espaço atende pelo poético nome de “Livraria”.
Aqui trabalham livreiros, que são essas pessoas vindas de todos os lados, de todas as idades e sexos, de ideologias e humor distintos. Em comum, elas têm o amor aos livros e ao grande prazer que há em fazer chegar ao leitor o livro certo. Acredite, há um prazer enorme nesse ofício. Primeiro, porque somos quase sempre brindados por um belo sorriso de satisfação do cliente quando conseguimos atender às suas demandas. E quem não gosta de um belo sorriso? Segundo, porque, depois de algum tempo atendendo uma mesma pessoa, vai-se criando uma confiança que nos torna mais conselheiros do que vendedores. E isso é muito bom. Em terceiro lugar, porque, no íntimo, temos a sensação de ser quase autores dos livros que recomendamos. Afinal, se não fosse por nossa indicação, a pessoa talvez jamais conhecesse aquele título ou autor. Então, quando o cliente volta depois de algum tempo se deleitando, por exemplo, com os livros “Um Defeito de Cor”, da Ana Maria Gonçalves; “Encontro Marcado”, de Fernando Sabino; ou “Vamos Comprar um Poeta”, de Afonso Cruz, para quem vocês acham que ele vai agradecer pelas semanas de prazer? Desculpem, escritores, mas a gente fica com um pouco dos seus louros.
Quando uma livraria abre num bairro, toda a população que ali mora passa a conviver com o livro. As crianças são as primeiras a exigir dos pais que as levem à livraria; afinal, elas têm tanta coisa para olhar e mexer. E vamos acompanhando essas crianças até a vida adulta, tal como um médico de família, ou seja, sabendo das suas preferências e curiosidades. Já vi muitos pais “reclamarem” por ter que trazer seus filhos à livraria e, no fim, acabarem tornando-se leitores.
Por isso mesmo, sempre me entristeço ao ver como os governos, de todas as esferas, menosprezam as livrarias como grandes fomentadoras da leitura neste país — até mais do que muitas bibliotecas que não têm, como nós, a agilidade de promover eventos. Noites de autógrafos, contação de histórias para crianças, cursos, debates, apresentações musicais, leituras de poesias, até dança já tivemos por aqui. Tudo isso para mostrar ao público que livro é emoção e movimento.
Durante a pandemia, dediquei-me a entregar livros na casa dos nossos clientes; afinal, quem gosta de ler não pode imaginar ficar confinado em qualquer lugar sem um bom livro. Assim, em companhia do Gaspar, meu cão, percorri quase todos os bairros da Zona Sul do Rio, fazendo as entregas e recebendo sorrisos. Cidade vazia, trânsito zero, ia daqui até a Glória, Urca, Laranjeiras, em poucos minutos.
Passada a fase mais braba da doença, a cidade começa a voltar ao normal. Com certa tristeza, observo que hoje a Argumento é a única livraria de rua de todo o Leblon e Gávea, dois dos bairros mais ricos da cidade. Antes, apenas na Rua Dias Ferreira, havia seis livrarias, incluindo a nossa.
Mas temos que seguir em frente com o entusiasmo e a criatividade de sempre, pois nosso público não pode ficar sem seus livros e eventos.
É tempo de recomeçar. Percebo que, com a volta das noites de autógrafos, a cidade, volta a cantar.
Nessas últimas semanas, com casa cheia, tivemos desde um debate sobre racismo no Brasil até um livro de uma jovem advogada sobre as fake news.
Marcus Gasparian é sócio, com os irmãos (Laura e Eduardo), da Argumento (importante livraria carioca), no Leblon. Dedica sua vida principalmente aos livros e sempre brinca que um livreiro ainda terá o status de um grande chef de cozinha.