Todo dia sim, outro também, os medos, os pavores que nos assolam emergem como zumbis insepultos. No entanto, a arte, o teatro são capazes de colocar em jogo, criando histórias, metáforas para que possamos pensar e ver que há como enterrá-los. “Angels in America”, encenada pela primeira vez em 1993 — lá se vão 30 anos —, é obra-prima multipremiada de duas partes e sete horas e meia de Kushner, sobre a morte e destruição na América de Ronald Reagan. Aparentemente documental, misturando a escuridão da política de então com o surgimento avassalador do vírus HIV, mostra-se uma força que nos arrebata ainda hoje.
A Companhia Armazém do Teatro encena, desde 2019, pela primeira vez no Brasil, o espetáculo completo composto por “O Milênio se Aproxima” (parte 1) e “Perestroika” (parte 2), dando a possibilidade de se assistir, no mesmo dia, aos dois textos. Há de ressaltar que das três montagens a que já assistimos, a original da Broadway, em 1994, o revival, em 2018, e a brasileira de 1995, Paulo Moraes consegue um resultado extraordinário na medida em que centra na atuação dos atores e, portanto, na força do texto, retirando o realismo do cenário, transformando a descida tonitruante do Anjo em uma presença de alterego.
O fio condutor é o desencontro dos personagens com suas próprias pessoas, com os outros, com as escolhas que fazem, e que a presença da morte iminente, inexorável o faz avançar e retroceder. O principal personagem é Roy Cohn, interpretado por Sérgio Machado, um dos mais ativos e maiores defensores de tudo que é reacionário e importante republicano. Contraditoriamente, é homossexual, e nenhuma de suas crenças, inclusive a do próprio poder, é capaz de fazê-lo escapar do destino. Desse fio, emerge um jovem mórmon (Rainer Cadete), também homossexual não assumido, infeliz no casamento, um portador do vírus, Prior (Jopa Moraes), que funciona como um profeta dos horrores que se anunciam.
A iluminação de Maneco Quinderé é um elemento narrativo pano de fundo para as ações que acontecem de forma caleidoscópica. A precipitação dos fatos é marcada pela movimentação de enormes mesas que alternam a dor e a insurgência de todos os personagens sobre o descolamento da vida que lhes vai tomando. É decisiva a qualidade de interpretação dos atores que, ao mesmo tempo que possui um certo realismo, é alegórica de como é incontrolável o jogo entre a pulsão de vida e a pulsão de morte. A peça começa com um funeral judaico como forma expressiva de mostrar, nos elogios, à morta que a vida é precedente. [
O tema de “Angels in America” é a própria vida e a capacidade resiliente de todos os ambientes. As situações são limites: separações, cortes, leitos de morte, estados alucinatórios, perda de poder e a montagem do Armazém do Teatro. Não exagera, não ultrapassa. Apresenta o grupo estranhamente reunido e interconectado, que inclui drag queens, mormons errantes, advogados variados, mãe, esposa, de forma a compor um painel cujo desenvolvimento não cansa de envolver a plateia, o que nos faz sair de alma lavada com o talento, a eficiência, a consistência do pessoal do Armazém do Teatro.
Fotos: João Gabriel Monteiro
Serviço:
Teatro Prudential, na Glória
Sextas-feiras, às 19h —Parte 2: “Perestroika”
Sábados, às 17h e às 20h30 — Parte 1: “O Milênio se aproxima” e parte 2, “Perestroika”
Domingos, às 16h e às 19h30 — Parte 1: “O Milênio se aproxima” e parte 2, “Perestroika”.