No mês de outubro de 1950, a escritora e poeta norte-americana Elizabeth Bishop recebe bolsa de estudos concedida pelo colégio Bryn Mawr. Imediatamente, troca o dinheiro por traveler’s checks. Tinha tomado a decisão de fazer uma longa viagem de navio, em direção ao sul. O dinheiro minguado lhe faculta cabina no navio mercante S. S. Bowplate, fretado pela Du Pont com o fim de transportar jipes e máquinas agrícolas para o porto de Santos. Há uma greve de estivadores e o cargueiro só deixará os Estados Unidos no mês de novembro. Além do pessoal de bordo, viajam a poeta e mais nove gatos pingados. Entre eles, a policial aposentada, Miss Breen, que será personagem do poema “Chegada a Santos”.
Os olhos da “turista” (assim se autodenomina Bishop no poema) se abrem famintos para a paisagem tropical após uma “dieta frugal de horizonte”. Passou dezoito dias em alto mar. Os acidentes geográficos da costa santista, apesar de espetaculares, se recobrem com a melancolia de quem os descreve. Os morros estão “cheios de autocomiseração, tristes e agrestes sob a folhagem frívola” e as “palmeiras são altaneiras e inseguras”. Um detalhe insignificante avulta a saudade e acentua a falta de higiene. E ganha o primeiro plano: “os portos são necessários, como selos de correio e sabonete”.
Elizabeth viaja a capital do estado de São Paulo e lá pega o trem para o Rio de Janeiro, onde pretende visitar duas amigas, Lota Macedo Soares e Mary Morse. No livro Uma arte, temos a primeira e terrível descrição da capital federal: “é tanta bagunça — mais ou menos uma mistura de Cidade do México com Miami; tem homens de calção chutando bolas de futebol por toda parte. Começam na praia às sete da manhã — e pelo visto continuam o dia todo nos lugares de trabalho. É uma cidade debilitante, totalmente relaxada (apesar do café excepcional), corrupta — passei três dias numa depressão horrível, mas depois me recuperei…”.
O incômodo psicológico se agrava por doença, o todo se transformando numa “história de infortúnios”. Ao comer caju, Elizabeth se intoxica violentamente. Só deu duas mordidas no caju, duas mordidas muito azedas. Seus olhos começaram a arder à noite e, no dia seguinte, o corpo começou a inchar, a inchar e inchar. E continua a carta endereçada à doutora que recomendara a viagem: “eu não sabia que era possível uma pessoa inchar tanto assim”. Chamam o médico. Atocham-na de remédios, aplicam injeções na veia e aconselham visitas diárias ao hospital. Como se não bastasse, ao final de uma semana, sofre “um ataque de eczema, muito forte, principalmente nas orelhas e nas mãos”. No escuro da carta, ressalta um pequeno detalhe revelador de significativa regressão: eczema “igualzinho como eu tinha quando era menina, mas nunca mais tive igual depois de adulta”. Moral e fisicamente, era uma criança perdida nos trópicos.
No entanto, mais se agrava sua doença, mais se transforma para melhor a primeira imagem que teve do país que visita e dos brasileiros. Escreve: “Seja como for, é muito interessante adoecer e tomar remédio em português, e os brasileiros ficam na maior admiração quando tem alguém doente — acho que minha doença fez com que eles se afeiçoassem a mim”. Perde-se a saúde, ganha-se uma amizade. Ao falar do cuidado das duas amigas que a receberam, surge o paradoxo: “Lota e Mary foram tão boas comigo que foi quase um prazer”.
Já por essa época, março de 1951, tinha esquecido os planos de retornar a Santos para tomar o navio mercante que a levaria aos países hispânicos. No dia do seu aniversário, 9 de fevereiro, ganha de uma vizinha desconhecida o sonho da sua vida, um tucano. Não é de se admirar que dias depois escreva: “nesta terra os desejos se realizam tão depressa que a gente chega a quase ter medo de desejar alguma coisa”.
Também já tinha passado dias em Petrópolis. Numa casa onde, diz em carta, “umas nuvens despencam das montanhas igualzinho a cachoeiras em câmara lenta”. Ou como está no poema “Questões de viagem” e na tradução de Paulo Henriques Britto: “e são tantas as nuvens a pressionar os cumes das montanhas / que elas transbordam encosta abaixo, em câmara lenta / virando cachoeiras diante dos nossos olhos”. Elizabeth sente-se em outro mundo e em casa. Afeiçoada às quatro estações do ano, confessa: “meu sangue anglo-saxão aos poucos está se desligando do ciclo das estações, e estou perfeitamente disposta a viver na mais total confusão quanto a estações, frutas, línguas, geografia, tudo”.
A turista esquece a bagunça brasileira e admite a confusão petropolitana. Abandona o porto, o navio e corta ao meio o roteiro da viagem primitiva. Adentra território brasileiro, interessa-se pelo livro de Helena Morley, Minha vida de menina, e quer traduzi-lo ao inglês. A turista transforma-se em “imigrante”. Escreve: “Apesar de estarem corretas todas as teorias a respeito de escapismo, exílio, etc., e da situação terrível do Brasil, estou cada vez mais gostando de viver aqui”.
Por dezessete anos viverá no nosso país.
No dia 12 de outubro de 1952, em carta a Kit e Ilse Barker, surge a frase mágica que também ajuda a explicar a metamorfose final de Elizabeth: “É engraçado — eu venho para o Brasil e começo a me lembrar de tudo o que aconteceu na Nova Escócia — pelo visto, a geografia ainda é mais misteriosa do que a gente pensa”.
Nesse clima é que Elizabeth abandona temporariamente a poesia e se entrega ao que chama de sua prosa poética. Escreve contos admiráveis. Um deles, “Na aldeia”, hoje no livro Esforços do afeto foi publicado pela Companhia das Letras. Como a própria autora confessa, naquele conto, escrito no Brasil, estão descritas as suas experiências de menina numa aldeia da Nova Escócia.
A crítica Lorrie Goldensohn, no extraordinário The Biography of a Poetry (infelizmente, ainda sem tradução), assinala que “as deslocações do exílio retiraram a poeta do caminho linear, sempre para a frente, da sua vida, e, através da memória, a levaram de volta à origem, a um reconhecimento simultâneo que ligava um Brasil primitivo e infantil à própria Elizabeth quando criança”. Suas descrições de paisagem, completa Lorrie, “ganham mais em população humana que animal”. Aí estão, entre outros, os poemas “O ribeirinho”, “Filhos de posseiros”, “Manuelzinho” e “O ladrão da Babilônia”.
Em poema definitivo, Elizabeth escreveu: “A arte de perder não é nenhum mistério”. Para ela, a geografia, sim, é um grande mistério.
Silviano Santiago é escritor, professor, poeta, tradutor, com inúmeros prêmios.