Eu me tornei jornalista pelo prazer de contar histórias. Desde menina. Sempre guardei frases, anotei as que mais me impressionaram. Incluí personagens fictícios na lista das pessoas que mais admiro. Livros me acompanham desde sempre. Houve um tempo em que os livros sumiram um pouco da minha rotina. Eu me trancava no banheiro para tentar ficar a sós com um pelo menos — banheiro, o único lugar que me oferecia a ilusão de privacidade, enquanto, do lado de fora, duas meninas pequenas, marido, casa, um pai com Alzheimer e responsabilidades exigiam também minha atenção (= tempo). E eu ainda sentava minutos diante do computador, para registrar ideias, fatos, cenas, diálogos, que terminaram por inspirar dois livros de crônicas -um prazer imenso escrever assim. Era minha válvula de escape exercer minha criatividade dessa forma, enquanto reportagens exigiam que eu me concentrasse em outros temas. Vivi essa dicotomia por anos, ora achando que estava tudo bem, ora tendo a certeza de que eu precisava mudar antes que fosse tarde demais.
A mudança começou há seis anos; exigiu coragem, persistência e a combinação de muitos fatores, inclusive, sorte. Eu deixava a redação jornalística, ambiente que frequentei diariamente por vinte anos. Vinte anos me apresentando como Isabel “da revista Época” (12 anos), ou Isabel “da Folha de S. Paulo” (4 anos), Isabel “do Jornal do Brasil” (4 anos). Sobrenomes demais; nem o casamento mudou meu nome de batismo. O divórcio profissional foi um processo trabalhado em análise.
Eu queria me dedicar mais à escrita que não cabia no Jornalismo onde eu trafegava. E essa foi a primeira de uma série de decisões caras porque queridas, e caras porque também cobraram seu preço. Vou falar da última das decisões.
Ainda havia pandemia lá fora e muitas incertezas. Nem vacina estava disponível. Crise. Real desvalorizado. Mesmo assim, decidimos vir para Londres, por causa do meu mestrado em Escrita Criativa. Houve festa e abraços na sala do apartamento em Portugal. As meninas se abraçaram como se fosse réveillon e uma nova era se descortinando. Tudo foi encaixando-se — até uma bolsa parcial eu ganhei aos 48 anos.
Passadas as comemorações, tivemos muitas conversas sobre como ia ser difícil, mas estavam todas felizes demais com a novidade.
Corta.
Estamos em Londres. Passada a festa e experimentado o deslumbre, a euforia arrefeceu. Depois das primeiras descobertas, uma ou outra filha reclama. Uma ou outra filha desabafa. Uma ou outra filha chora. Meu coração trinca. Uma ou outra enfrenta dificuldades, respira, conta algo engraçado. A gente ri, e lágrimas descem de novo no meio da gargalhada. Conversas assim ainda são recorrentes: eu com uma, eu com as duas, ele com uma, uma com outra. Dois países em quatro anos. Duas grandes mudanças. Sinto-me culpada, mas sei que, no futuro, elas poderão recontar as mesmas cenas em que uma ou outra chorou, mudando apenas os cenários. Primeiro foram as dificuldades em Portugal, depois as dificuldades na Inglaterra, e vão rir disso tudo.
Terão saudade do rio Homem e do rio Tâmisa, do parque da Rodovia e do Richmond Park, dos concertos em Lisboa e no O2. Não saberão se era melhor usar qualquer roupa para a escola ou o uniforme igual ao do Harry Potter, se preferiam ir a pé ou pegar o red bus. Guardarão com nostalgia fotos das amigas portuguesas e das inglesas (porque elas hão de aparecer, torçam por elas).
É assim que as coisas acontecem no mundo adulto: os responsáveis decidem, os filhos seguem (até uma certa idade pelo menos). Haja coragem! São mais de quatro anos longe do Brasil. E estamos só de passagem.
E por estarmos só de passagem, meu pai, que se despedia de todos havia tempos, se foi.
O preço, como eu disse, é alto demais.
Antes da cena da comemoração na sala do apartamento em Portugal, onde moramos de forma mais simples, porque fizemos escolhas, e vivemos de acordo com elas, trabalhei dia e noite (de verdade) para botar alguns sonhos de pé.
Cometi o desatino de lançar meu quarto livro sozinha e à distância, recorrendo a um financiamento coletivo. Se pedir ajuda já é algo difícil, imagina pedir dinheiro para desconhecidos?
Sofri.
Tive medo.
Quase me arrependi.
E o livro saiu porque desistir não era uma opção (e está à venda no Rio).
Olho para trás e penso que, apesar das conversas difíceis, da escassez de soluções fáceis (isso existe, aliás?), minhas filhas estão me observando.
Elas me observam lá do quarto de portas fechadas.
Elas me observam mesmo com fones e Tik Tok dentro do ouvido.
Elas me observam ainda que, no WhatsApp, estejam com amigos.
Elas me observam quando estão sozinhas no ônibus, indo ou voltando da escola.
E talvez por saber que, até enquanto dormem nas manhãs preguiçosas dos fins de semana, elas me observam, eu continuo escrevendo, trabalhando, tentando melhorar.
Movida pela observação discreta desta minha audiência, eu mantenho vivo o desejo daquela menina, que só se tornou jornalista porque queria contar histórias.
Isabel Clemente é escritora, jornalista, mãe da Letícia e da Carolina. Cursa mestrado em Escrita Criativa em Londres. Carioca, só deixou o Rio para morar cinco anos em Brasília, quatro em Portugal e dois na Inglaterra, onde trabalhou como repórter, editora, colunista e correspondente para a Folha de S.Paulo, Revista Época e Jornal do Brasil. Autora de “A pior mãe do mundo — uma biografia autorizada de todos nós”, “A mãe da lua e do vento” (pelo selo Giacombelo, à venda na Banca Bossa, no Leblon e na livraria Folha Seca, no Centro) e co-autora com Ilona Szabó de “Drogas: as histórias que não te contaram” (Zahar).