Já deu aquela surtada sem saber direito de onde surgiu? Mas, se o pico de estresse é recorrente, principalmente no trabalho, melhor acender a luz amarela — não é mi-mi-mi. A síndrome de burnout passou a ser considerada doença ocupacional no primeiro dia de 2022, depois de incluída na Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS) — segundo o texto, um “estresse crônico de trabalho, que não foi administrado com sucesso.”
Na prática, isso significa que agora estão previstos os mesmos direitos trabalhistas no caso das demais doenças relacionadas ao emprego. Burnout não é novidade, muito menos os seus sintomas. No início dos anos 1970, o psicanalista americano Herbert J. Freudenberger abriu uma clínica em Nova York para tratar pacientes pobres, trabalhando até 12 horas por dia com sua equipe. Rapidamente, o projeto virou o caos, com todo mundo extenuado e mal-humorado. O diagnóstico, dado pelo próprio médico: “síndrome de burnout”, um estado de exaustão permanente provocado pelo trabalho.
A classificação tardia tornou-se urgente até pelos números — antes mesmo da pandemia, um estudo da OMS apontou que 300 milhões de pessoas sofriam de depressão e 260 milhões, de ansiedade e, juntos, custavam 1 trilhão de dólares por ano em perda de produtividade. A pandemia deu uma agravada na situação.
A coluna conversou com Ana Carolina Souza, mais de 20 anos de experiência em Neurociência Comportamental, além de fundadora da Nêmesis (empresa que oferece soluções corporativas na área), sobre o futuro do trabalho, preconceito em falar sobre saúde mental, o modelo obsoleto das empresas e como fazer para o quadro mudar.
Por que a classificação tão tardia?
O burnout é um desfecho de um estresse crônico associado ao trabalho. Eu estudo o que está por trás e, desde antes da pandemia, a gente já falava sobre a importância em trabalhar a saúde mental nas empresas, em mudar a relação com o trabalho. É como se houvesse uma questão silenciosa, porque a gente notava a fragilidade da saúde mental das pessoas através dos dados crescentes, e, apesar de uma maior conscientização, as iniciativas discutidas pela maioria das empresas ainda estavam apenas engatinhando quando veio a pandemia. E ela trouxe sentimentos de risco de vida, maior restrição, distanciamento social que nos afastou do convívio, o que é uma maneira de controlar o estresse, além de toda sobrecarga em lidar com a casa, filhos, trabalho, escolas. Ficou tudo colapsado. Pelo aumento das evidências, até com a pandemia, e da urgência de aprender a criar limites, a OMS teve que correr.
O que muda?
Não muda o diagnóstico e as características da doença, mas a maneira que a gente tem que lidar com ela e as responsabilizações. A saúde mental ainda é um tabu em nossa cultura, então a gente tende a olhar para a pessoa que desenvolve o burnout como se ela não fosse resiliente o suficiente. Na visão do empregador, ele deve selecionar pessoas mais resilientes, como se fosse possível entender que existe um grupo mais frágil, quando, na verdade, isso está mais ligado ao ambiente, à maneira como a gente se relaciona com o trabalho, à forma como os fluxos são colocados e à liderança do trabalhador em si.
Todo mundo está suscetível ao burnout?
Mais cedo ou mais tarde, todo mundo pode chegar a um nível de esgotamento pelo tempo de duração do estresse. Quando a OMS classifica a doença associada não ao trabalho ser de responsabilidade não só psiquiátrica, mas também a um estresse de trabalho não administrado. Então as empresas passam a ter mais responsabilidade e a ter que olhar para o fenômeno de outra maneira. O burnout é um desfecho e não acontece de repente.
O que uma empresa deve fazer?
Amadurecer a maneira de lidar com a saúde mental. Dependendo da estrutura, deve contratar um profissional que possa avaliar, dar o diagnóstico e fazer o acompanhamento. A recuperação é muito mais dispendiosa porque é um processo complexo e longo, e não podemos colocar só na conta do empregado. Antes que isso aconteça, a empresa deve oferecer uma estrutura e desenvolver estratégias de monitoramento. O que a empresa ganha com isso? A possibilidade de identificar casos que estão beirando o burnout e saber quem ela envia para uma avaliação clínica. E também monitorar os níveis de estresse para entender o que está acontecendo e fazer dinâmicas, palestras, rodas de conversa para ajudar no melhor equilíbrio de vida. As emoções precisam ser valorizadas e respeitadas: se um colaborador surta, como eu posso esperar que um líder saiba conduzir isso? Acredito que as empresas precisam preparar o RH para ter um olhar sobre o estresse, porque isso vai aparecer cada vez mais.
E se o funcionário estiver numa empresa que não tem essa estrutura? Como ele vai identificar?
Buscando informação, porque hoje existem muitos estudos e referências sobre o assunto. É importante entender que trabalhar muito pode causar burnout, mas não só isso. Existem muitas pessoas que trabalham muito e ficam cansadas, o que é normal. O problema é quando a pessoa tem a sensação de que não está rendendo, não percebe pra onde vai tanto esforço, o que acaba em frustração ou não reconhecimento. Acontece uma sobrecarga e sentimentos negativos, como se ela estivesse carregando o mundo nas costas. Se estamos trabalhando excessivamente, mas estamos empolgados, animados e sentimos que vale a pena, resistimos mais ao esforço, ainda assim, há limite. Mas as pessoas que nunca desconectam vão ter uma estafa mental e física.
Os principais sintomas e quais são os inimigos do bem-estar?
Cinismo ou sentimentos negativos do tipo ‘não suporto’, ‘não quero’, ‘não consigo’, ‘não sei’… Que situações podem trazer essas circunstâncias de sobrecarga? Prazos impossíveis, excesso de interrupções, mudança de meta o tempo todo, uma gestão muito crítica que só foca no que falta, no que está dando errado – isso dá a sensação de não chegar a lugar nenhum. Um grande inimigo é a cobrança porque vivemos numa sociedade muito focada na performance, que gira ao redor da relação com o trabalho e olhamos para a experiência de prazer como se fosse proibido. No nosso cérebro, temos dois sistemas que coordenam nossa motivação – um deles é a atividade do estresse, o outro é relacionado ao prazer, e precisamos dar espaço pra isso. Não ter tempo para as relações sociais é outro inimigo, porque a qualidade das nossas relações é capaz de impactar na nossa sobrevida. Ficar pensando no trabalho o tempo todo também não é legal. Temos que colocar as atividades de relaxamento na nossa rotina.
Como prevenir?
Além dos velhos conhecidos, como dormir, alimentar-se bem, fazer atividade física etc., é preciso parar para valorizar o que tem de positivo no esforço. Exemplo: em vez de você marcar na agenda tudo o que falta fazer, que tal marcar o que conseguiu fazer? Porque não dá pra fazer tudo, e isso tem a ver com a cobrança, que pode ser externa ou não. É importante aprender a planejar de forma madura o que é possível fazer no seu trabalho e o que cabe no seu dia. Gosto também da prática de riscar o que você não vai fazer, o que vou tirar da lista e jogar pra frente. A gente tem que negociar pra onde vai essa energia porque ela precisa ser equilibrada. Temos que saber dosar o que é negociável para não viver no lugar da falta.
O “home office” veio pra ficar?
Hoje ouvimos muito falar nos modelos da semana de quatro dias (30 horas), em que uma série de empresas em vários países estão testando. Essa proposta tem permitido às pessoas dedicarem mais tempo a outras atividades fundamentais para o bem-estar e saúde, como convívio social, melhor alimentação, sono, hobbies, outros interesses que surgem do prazer. Isso muda tudo. Não podemos ter uma vida pautada no trabalho, por melhor que seja a relação com ele. Vimos um desconhecimento de como fazer o trabalho à distância, mas acredito que o “home office” vai ficar, mas não podemos considerar a experiência da pandemia como definidora do que é o trabalho remoto porque precisamos melhorar muito. Sou defensora do trabalho flexível porque permite encaixar as necessidades na rotina: filhos, treino, alimentação etc. O trabalho está na cabeça, no telefone, no computador…. Existe a estrutura, mas falta cultura, o hábito.
Estamos no janeiro branco, de conscientização da saúde mental. Alguma consideração final?
Temos que falar sobre isso para normalizar esse assunto e as pessoas perderem o medo ou vergonha de reconhecer que estão no limite. Algumas perguntas: Você está se sentindo irritado? Indisponível para interagir com as pessoas? Fica doente recorrentemente? Tem palpitações? Vive alérgico? Perde o controle com facilidade? Chora muito? Não consegue viver o prazer? Está tudo cinza? Essas são algumas pistas, e seu corpo está lhe mostrando que você não está bem e precisa de limites. Quando as pessoas ouvem casos semelhantes, elas se reconhecem naquele fenômeno. A gente fala sobre autocuidado, mas é difícil olhar pela janela e negociar os limites. Temos que desmistificar esse tabu de quem tem depressão, ansiedade e estresse. De alguma forma, é alguém mais frágil e isso não faz o menor sentido; isso é uma perspectiva preconceituosa. O problema é maior do que a gente imagina e precisamos falar sobre isso. Não sou eu que não consigo — na realidade, ninguém está conseguindo, só a rede social, que é um recorte da realidade perfumada.