Em agosto do ano passado convidamos Lya Luft para a página “De Próprio Punho”. A escritora, que morreu nesta quinta (30/12), em Porto Alegre, de câncer, à época do texto, no auge da pandemia, se disse de altíssimo risco. A foto que ilustra a página foi escolhida pela própria Lya. Toda a sua obra, atualmente, está na Editora Record — um total de 31 livros, como “As Parceiras”, “Perdas e Ganhos”, “Reunião de Família” e outros. Seus livros têm tradução em vários países, com inúmeros prêmios. Era colunista do jornal Zero Hora.
Confira o texto:
Não vou mentir nem disfarçar: embora as circunstâncias sejam confortáveis, a quarentena tem me custado muito. Com 82 anos e infarto há alguns meses, sou considerada altíssimo risco. Significa ficar em casa, se possível não receber ninguém, a não ser com muitos cuidados, como máscara e álcool gel, além de distanciamento de 2 metros.
Tudo isso gera incômodos de toda sorte; estou assim há cinco meses. Sinto falta do meu cotidiano simples, em casa mesmo: dia de pegar as netas no colégio e almoçarem aqui; dia da família de meu filho almoçar aqui; manhã no atelier que frequento (agora pinto no meu atelier, aqui na minha cobertura); dia de almoçar com amiga no Clube Inglês; etcetcetc. Sinto falta, enfim, de presenças e afetos; falar com vídeo não me satisfaz.
Raras vezes as netas, do edifício ao lado, me visitam de máscara — sentamos todas longe umas das outras, e é estranho porque sempre tivemos um convívio muito alegre. Por sorte, está comigo meu marido, Vicente, e domésticas que fazem os trabalhos que não posso (estão comigo há vinte anos!). Quanto ao trabalho, continuo podendo escrever em casa, como sempre. Tenho um Instagram, @lya.luft, onde leio trechos de meus últimos livros, “A casa Inventada” e “As Coisas Humanas”, pinto um bocado, leio, vejo TV, enfim.
Ficar em casa sempre foi meu jeito, mas queria de volta a liberdade de receber gente e o alívio dessa imensa preocupação e dor com a tragédia dessa pandemia no mundo. Meu ceticismo com a pós-pandemia inclui empobrecimento mundial, desgaste na cultura e educação, novos hábitos menos afetivos e crescimento de xenofobia.
Há coisas boas nesta quarentena, poucas, como convívio melhor em casa entre casais e filhos (quando percebem que se gostam e não que se detestam…), ocasião de quietude e reflexão, para quem consegue. Na foto, tenho no colo minhas duas parceirinhas, Melanie e Penelope, lulus-da-pomerânia, “my babies”.