Primeiro de abril de 1964. A lembrança dessa data nunca surge em vão, nunca sem desenrolar um fio sem-fim de histórias. E aqui vai mais uma. Cedinho, naquele 1o. de abril, o crítico literário Luiz Costa Lima saiu para trabalhar na Universidade do Recife (como era então chamada a atual Universidade Federal de Pernambuco-UFPE), onde atuava como colaborador do processo de alfabetização para o Serviço de Extensão Cultural (SEC), ao lado de Paulo Freire. O SEC havia sido criado por Freire, no começo da década de 1960, para fazer das atividades de extensão uma política contínua da instituição.
Costa Lima caminhava para o trabalho como quem seguia para uma guerra. Ainda que não tivesse ideia do tamanho exato do problema que o esperava, sabia que precisava preparar-se. Assim, junto com um colega, “tomou posse” de uma Kombi e de um mimeógrafo, artilharia que acredita ser de primeira instância no campo de batalha. Mas logo viu que seria insuficiente: o Presidente Jango havia ido embora; não havia como resistir.
Naquele mesmo ano, Freire foi preso e começou seu processo de exílio. Passou pela Bolívia, Chile, Estados Unidos, Inglaterra e Suíça.
Costa Lima lembrou sua parceria e convivência com Freire durante uma longa entrevista que fiz com ele nos últimos meses de 2016, para o Suplemento Pernambuco, publicação em que atuo como editor. Michel Temer havia assumido, há pouco, a Presidência do País. E “Bolsonaro Presidente” era nada mais que uma hipótese distante. Mas o processo para macular a imagem de Freire como “Patrono da Educação do Brasil” já galopava em altíssima velocidade, o que não era, como bem lembrou o crítico, uma grande novidade. No Recife do começo dos anos 1960, esse processo era comandado por um Freire com “Y”, Gilberto Freyre.
“Ele (Gilberto Freyre), um pouco antes do golpe, tinha feito uma série de artigos no jornal Diário de Pernambuco, atacando seriamente o reitor e, indiretamente, o serviço de alfabetização de Paulo, que ele atacava como se fosse projeto de “comunistização” do Brasil, um absurdo tão grande, que ele mesmo sabia que não era verdade. Paulo nunca foi marxista, e ser marxista não é nenhum mérito — ele era um católico de ir à igreja todos os domingos. No entanto, essa era a posição da direita no Recife, e a direita no Recife sempre foi uma coisa muito forte e era comandada por Gilberto. E também Freire era atacado pelo próprio Partido Comunista, que não se interessava por uma libertação do Brasil fora de uma linha então stalinista”, lembrou Costa Lima durante nossa conversa.
De 1964 para 2016 até 2021. Pulamos os anos, e as décadas, e atacar Paulo Freire permanece uma constante. Associá-lo a uma ideia de comunismo lunática, um clichê. Em fevereiro passado, quando decidimos tê-lo como um dos homenageados da Bienal do Livro de Pernambuco, a ideia era ter na homenagem nomes que misturassem em seus trabalhos um quê de literatura com um outro quê de pedagogia, numa série de lives que antecederiam o evento. O escritor Jeferson Tenório foi um dos primeiros nomes que pensei para o projeto. Seu elogiado romance “O avesso da pele”, lançado em 2020, tinha um diferencial de que poucos se davam conta: tratava-se de um raro exemplar de romance brasileiro com um protagonista que é professor e que tem a sala de aula como seu cenário maior de perdas e conquistas. E mais: um professor negro em Porto Alegre.
Em março, Tenório escreveu, em sua coluna no jornal gaúcho Zero Hora, um texto tratando das dificuldades dos professores em tempos pandêmicos. O título da coluna acabou virando o título da live que ele faria alguns meses depois à Bienal-PE: “Sem Paulo Freire, nossa tragédia teria sido maior”. Assim que o texto foi publicado no ZH, Tenório recebeu uma série de ameaças e intimidações de ódio, que resultaram numa corrente de apoio do mercado editorial. “A política do medo não vai vencer’, declarou, à época, o escritor.
Homenagear Paulo Freire, repetir seu nome e, mais importante, tentar entendê-lo são ações necessárias contra a tal política do medo. Uma política muitas vezes subterrânea, que nos acompanha não é de hoje. Quando pensamos nos desafios que temos pela frente em tempos tão conturbados, não é raro repetirmos que estamos diante de uma espécie de “encruzilhada”. O curioso é que sempre pensamos em encruzilhada como algo ruim, como o fim da linha, quando é justamente o oposto.
Como bem lembrou Tenório numa conversa que tive com ele, a encruzilhada é a solução possível. É que a encruzilhada nos coloca diante de várias possibilidades de caminho a seguir. Mas, antes do primeiro passo, é preciso parar, refletir e escolher. E é isso que nos dá tanto medo e que tanto alimenta o medo ao nosso redor.
Schneider Carpeggiani é jornalista, doutor em Teoria Literária e curador da edição 2021 da Bienal do Livro de Pernambuco, que acontece entre os dias 1º e 12 de outubro, no Centro de Convenções de Olinda, e também virtual,com o mote “2021 – O ano em que a história começa”, em que um dos quatro homenageados é o pernambucano Paulo Freire, cujo centenário é comemorado este ano.