As memórias afetivas são capítulos muito importantes para o chef Elia Schramm, 37, nascido na Suíça, criado no Rio. E vão estar o tempo todo em seu primeiro restaurante, em Ipanema (um prédio de quatro andares onde funcionou o Salitre, com adega subterrânea), a Osteria Babbo, em homenagem ao seu pai, Roland Schramm, que não tem nada a ver com gastronomia — é filósofo. “Babbo é como eu chamo meu pai desde os 2 anos — o nome do restaurante tinha que ser esse. Nada mais verdadeiro que começar pelas origens, aquele que foi meu maior incentivador e me ensinou o amor pela gastronomia”, diz Elia.
O chef chegou a cursar dois anos de Direito, divertiu-se como DJ em festas cariocas, mas formou-se em Gastronomia pela Estácio, voltou para a Europa e trabalhou no Le Taillevent (duas estrelas Michelin), em Paris. Desde então, são 18 anos nas melhores cozinhas do mundo e, para o nosso deleite, trouxe todo o seu talento de volta ao Rio — como no Laguiole (uma estrela Michelin conquistada por ele), Posì, Oia, Mimolette, Luce e Pice.
Mas sua longa história com a gastronomia começou em casa, com o pai e a avó Germana. O Babbo vai ser isto: um mix da Itália, com uma passada na França, uma parada na Suíça e a alma no Rio.
Quais são as expectativas com o novo restaurante?
Tem um ditado que diz: “A dor é inevitável e o sofrimento, opcional”. As coisas têm o tempo delas; obviamente, estou ansioso e apreensivo. Ao mesmo tempo, não poderia estar mais feliz, afinal é a realização de um sonho. Acredito que passei minha vida profissional me preparando para esta nova fase. É a abertura do meu primeiro restaurante. Como dono, é uma alegria indescritível, como se eu estivesse tendo um filho, com muita responsabilidade e um friozinho na barriga. Essa sensação é algo muito positivo quando sabemos transformar isso em energia criadora e transformadora.
O nome Babbo foi a primeira escolha?
Eu sempre soube que meu primeiro restaurante teria que ser algo que contasse a minha verdade, a minha ancestralidade, que resgatasse as minhas origens. Realmente, o meu passaporte para a gastronomia começa com meu pai, que, apesar de não ser chef de cozinha, foi a pessoa que me transmitiu o amor pela gastronomia, pelo conhecimento e pela cultura; era ele também que cozinhava na minha casa. Obviamente teria que ser algo em homenagem a essa fonte inspiradora; daí o nome Babbo, papai em italiano. Ser um restaurante de comida italiana também fez todo o sentido, já que eu cresci na Suíça italiana, dentro desse mundo da massa, dos risotos, das polentas, dos assados… — principalmente de Roma pra cima, que era muito presente na casa da minha vó.
O que gostaria de dizer a seu pai, que ainda não falou sobre esse momento? E o que ele achou da homenagem?
Meu pai é filósofo, pensador, trabalha com linguística, linguagem e semiótica, é professor universitário, um típico intelectual. Ele sempre me apoiou muito e tem algumas frases que ele me diz desde novo; uma delas é “escolha uma profissão que você realmente goste porque, se você tiver que fazer todos os dias algo que não goste, estará condenado a uma vida de infelicidade”. Isso é algo que carrego comigo e que me ajuda a correr atrás, no dia a dia. Meu pai ficou muito emocionado com a homenagem, por ter sempre me apoiado a perseguir meus sonhos. Vou deixar uma mensagem para ele nesta entrevista: “Pai, muito obrigado por ter sido duro quando era necessário, por ter sido compreensivo quando eu precisei. Tenho certeza de que isso tudo me ajudou a ser o homem que eu sou hoje”.
Você tem dois filhos, Olívia e Benjamin. Pra você, o que é ser pai?
Meus filhos são tudo pra mim. Eu gostaria de ser mais presente do que sou. Quando a Olívia (7 anos) nasceu e depois o Benjamin (3 anos), a vida passou a ter outro sentido pra mim. São coisas que antes não passavam pela minha cabeça. Comecei a ter medo de morrer, por exemplo, porque eu não posso deixá-los sozinhos neste mundo.
O que é mais difícil no mundo gastronômico?
A maior dificuldade de todas, em qualquer operação de alimentos e bebidas, é manter o padrão; afinal, lidamos com pessoas, e não com robôs. Por mais que você seja o chef, tem uma equipe, e você depende dela. Então, o mais prazeroso e mais difícil é lidar com essas pessoas, motivá-las e fazer com que elas entreguem sempre no padrão que elas precisam entregar – a constância é a eterna busca de um chef de cozinha.
Como foi sobreviver à pandemia e ainda investir num restaurante do tamanho do Babbo?
Eu não tive outra escolha a não ser investir em um restaurante como o Babbo. Ele é o início de um novo ciclo que se sucede ao fechamento de um ciclo que foi muito próspero, de muito aprendizado, muita troca, realização, durante quase quatro anos. O Babbo é um empreendimento que eu sempre quis ter e sabia que esse momento ia chegar. A pandemia adiantou as coisas, fez com que a gente pensasse no que era importante, e foi isso que fez o Babbo surgir tão rápido.
Você nasceu na Suíça, mas foi criado no Rio e conhece bem a cultura carioca. Do que você mais gosta e o que mais o incomoda?
O que mais me incomoda e, ao mesmo tempo, o que mais gosto no Rio é o carioca. O lado despojado, informal e divertido do carioca é algo muito bacana, a cidade é muito vibrante, além das belezas naturais, claro, a boemia, a cultura do samba, da música — o Rio sempre foi um berço cultural muito importante. Mas tem o lado do carioca de querer sempre se dar bem, ser malandro e esperto. Isso não é legal, faz com que o tecido social e as relações pessoais apodreçam.
Você circula por todas as rodas. Leva isso pra sua cozinha?
Eu costumo dizer que tive a oportunidade de ser criado em diversos lugares do mundo; hoje enxergo isso como uma riqueza. Sou um itinerante desde 1 ano de idade. Já morei na Suíça, na África, na Itália, na França… Até os meus 6 anos, viajei muito e morei em muitos lugares. Aos 7, viemos morar no Rio, em Santa Teresa, e lá sempre pude conviver muito com os dois mundos: Zona Sul, estudava no Cruzeiro, e Zona Norte, tinha muitos amigos na Tijuca, Vila Isabel. A família da minha mãe veio da Zona Norte: Lins e Vasconcelos, Água Santa, Méier e Caxambi. Então, sempre estive na cidade toda, e eu gosto de gente de verdade; sou apaixonado por isso. Gosto de diversidade e multiculturalidade e, sim, isso reflete na minha cozinha. Minha inspiração vai desde um restaurante estrelado até um boteco na Tijuca.
Como você descreve a sua cozinha?
Minha cozinha é uma interpretação bem pessoal de tudo aquilo que eu vivi, das coisas que eu experimentei, daquilo que eu comi quando criança com a minha avó e com meu pai, com essa forte influência italiana. Depois incluí o movimento que fui fazendo ao longo dos anos, quando fiz uma formação com chefs franceses. Mesmo quando morei na Inglaterra, trabalhei com chef francês. Também incorporei novas coisas ao longo das minhas viagens pela América Latina. Minha estrela no Laguiole, por exemplo, eu ganhei depois de uma viagem ao Peru que me deixou enlouquecido; quando voltei, refiz o menu inteiro. Passei uma temporada na China, que também me deixou fortemente influenciado. Eu gosto de me aventurar nas cozinhas asiática, francesa, mediterrânea, brasileira. Minha cozinha respeita a tradição, mas é uma cozinha sem amarras, com a interpretação dos elementos que eu aprendi. É o que eu gosto de comer, muito focada em combinações de sabores e um pouco de leveza também.
As mulheres têm entrado aos poucos na cozinha, e você escolheu uma sous chef. Isso está mudando?
Fiquei atento e me prometi, principalmente por não concordar com as injustiças, e esse pensamento machista da maioria dos lugares que eu conheço e trabalhei, que quando abrisse meu próprio restaurante, faria as coisas diferentes, de dar mais oportunidade para a mulher, para gay, negros… A Júlia, minha sous chef, é talentosíssima, minha chefe de bar também é uma mulher (Mariana Burity), e tenho dois mâitres, uma mulher e um homem. O Babbo é uma casa atenta não só à comida e ao cliente, mas também a outras coisas que importam para termos uma sociedade melhor e mais igualitária, no sentido de oportunidade, de tratamento, de respeito, tanto em questões de gênero como sociais.