Perguntaram recentemente ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, se ele tomaria cloroquina se seu médico lhe prescrevesse em um eventual caso de Convid-19. Ele declarou: “Eu vou tomar só se o médico me receitar.”
Em uma pesquisa, a Associação Médica Brasileira constatou que 34,7% dos médicos entrevistados prescreveriam cloroquina para tratamento da Covid-19, o que poderia indicar que a classe está dividida. Diante disso, há uma pergunta feita desde a Antiguidade que parece ainda atual: se você adoecer, como escolherá o médico que o tratará?
Suponha que seu problema não seja escolher um médico, mas escolher um motorista. É provável que você o leve para conduzi-lo pelas ruas, verificando se ele é atento e demonstra ser prudente no trânsito. É provável que você também queira receber referências de outros empregadores para decidir por contratá-lo ou não, mas avaliar sua maneira de conduzir é a parte decisiva do processo de escolher um motorista. Isso pode nos levar a pensar que nossas opiniões são suficientes para escolhermos entre dois profissionais.
Suponha, porém, que você deva escolher não um motorista, mas um piloto para seu avião. E suponha que você não saiba como pilotar um avião. Você será capaz de escolher, por si só, o melhor piloto de avião? Só escolhemos bem naqueles campos que conhecemos. A diferença entre escolher um motorista e um piloto é que você provavelmente sabe como conduzir um carro com segurança e, por isso, pode avaliar a competência técnica do motorista. Se o motorista se esquecer de pisar na embreagem antes de trocar de marcha, ele não será um bom motorista, mas, no caso do piloto, será que teria como avaliar se ele deveria ter apertado o botãozinho verde antes de puxar a alavanca amarela?
Essa questão foi abordada por Aristóteles na Ética a Nicômaco. Será que qualquer pessoa pode escolher um flautista para uma orquestra? Não posso avaliar o grau de dificuldade de sua execução para avaliar sua competência, apenas músicos podem avaliar apropriadamente a qualidade técnica de outros músicos. Posso achar bonita a música escolhida por um flautista e não gostar da escolhida por outro, mas isso provavelmente diz mais sobre mim mesmo do que sobre os músicos. Como, então, escolher um médico?
Assim como somente quem sabe pilotar aviões pode dizer quem é um bom piloto, e somente quem sabe tocar flautas pode indicar quem é um bom flautista, somente quem é um médico pode dizer quem é um bom médico. É claro que ser competente, do ponto de vista clínico, talvez não seja o único critério para se escolher um médico em condições normais. É preciso que ele seja disponível e, também, preferível que seja simpático, mas, partir desses critérios, poderia levar-nos a escolher mal, e todo mundo preferiria o Doutor House a um charlatão simpático se sua vida estivesse em jogo.
Conhecimento técnico é o critério principal que devemos levar em conta na hora de escolher um médico. Platão disse que conhecimento é uma opinião verdadeira e justificada. Se alguém prescrever leite para tratar osteoporose porque acredita que, sendo os ossos “brancos”, e sendo o leite “branco”, eles se fortalecem reciprocamente, quem o faz não conhece a doença, pois sua prescrição pode até ser verdadeira, mas não é fundamentada (e poderia levar alguém a também prescrever gelo para osteoporose, já que ossos e gelo são brancos). Para dizermos que alguém possui um conhecimento sobre algo, essa pessoa precisa demonstrar não apenas que existe um nexo causal entre dois eventos, mas também porque existe tal nexo.
Dificilmente poderíamos avaliar se um médico possui conhecimento; por isso, precisamos confiar em outros médicos quando se trata de escolher um. Como nem sempre podemos perguntar a outros médicos, precisamos confiar nas diretrizes que corporações de médicos emitem sobre o comportamento dos médicos para avaliá-los. A medicina tem se baseado, cada vez mais, em evidências científicas, sobretudo em termos de avaliação da eficácia de um tratamento para uma doença.
Pesquisas controladas e estudos de revisão permitem determinar, de modo cada vez mais preciso, a eficácia dos tratamentos prescritos. E, como aponta a própria AMB, a cloroquina não é eficaz no tratamento da COVID-19 e envolve riscos reais para a saúde das pessoas. Opiniões contrárias não são nem verdadeiras, nem fundamentadas, e por isso são meras opiniões, e não conhecimento.
Minha resposta à pergunta que foi formulada ao senador Rodrigo Pacheco, portanto, teria sido diferente. Se eu pudesse escolher o médico, dificilmente seria um que rejeitasse a medicina baseada em evidências. Dificilmente seria um que prescrevesse cloroquina para Covid-19. Isso significa que o fato de 34,7% dos médicos prescreverem cloroquina para COVID-19 não é sinal de que haja uma divergência científica no meio médico sobre que tratamento deveria ser empregado, mas apenas que muitos médicos brasileiros não estão preparados para o exercício científico de sua profissão.
Marcelo Campos Galuppo é professor de Filosofia do Direito na PUC Minas e na UFMG, e coautor, junto com Davi Lago, do livro “Um dia sem reclamar”, da editora Citadel.