Todos nós nos esforçamos para que a vida valha a pena. Alguns encontram esse valor no trabalho; outros, nos amores. Há os que o encontram até mesmo na preguiça e no entregar-se às marés de uma existência improdutiva na embriaguez, na virtude, na poesia. Não importa como e nem onde. Pessoas tão diferentes umas das outras que somos, direcionamos nossa existência para vícios e virtudes tão variadas quanto nossos corpos e espíritos são capazes de criar.
Esses valores são o norte de nossas bússolas morais. Podemos alterar o curso ou mesmo mudá-lo quando afetados de arrependimentos, tristezas, medos, novas esperanças, ou, simplesmente, cansaço. Não importa o quão duradoura seja nossa trajetória existencial. Mesmo sabendo-a precária e efêmera, lutamos para nos manter no caminho. Enraivecemo-nos contra o que ou quem nos impede de segui-lo – da cara feia às vias de fato, às vezes, de forma bastante violenta.
O esforço ao prosseguir, existindo do jeito que nos entregamos a existir, alimenta-nos a dúvida. Estamos no caminho certo? Os valores a que nos inclinamos são dignos de nossa existência? Valem o esforço? Fazem da vida algo que vale a pena?
Apesar de a dúvida ser companheira constante da trajetória existencial, há um momento na vida em que ela parece fazer ainda mais sentido: diante da morte.
Cícero, a exemplo de outros estoicos, pontuava que, só diante da morte, pode-se julgar se a vida valeu a pena. Só nesse instante é que há vida vivida sem vida por viver. Se houvesse vida por viver, novas circunstâncias poderiam pôr em cheque nossas escolhas passadas; tornar ruim algo até então bom, como o sujeito casado há 30 anos que se pergunta o porquê de ter se casado. Há 30 anos, fazia muito sentido.
A pandemia nos traz a morte em quantidades e espalha sua presença. Ela deveria nos afetar, fazer-nos julgar sobre a nossa própria existência. Ao menos, lutar contra ela, protegendo-nos e protegendo outros com medidas simples e adiando o mais que pudermos o ponto final desta nossa existência. Deveria fazer-nos buscar a ciência que nos cura e salva. Deveria nos fazer repensar nossa existência e seus valores. Deveria…
Mas não é o que acontece com todos.
O mundo mudou: agora, pandêmico, pede solidariedade e respeito, mas nem sempre os encontra. Há a resistência, há teimosa insistência na defesa dos valores que se acredita trazerem felicidade. Quer-se manter a trajetória mesmo tendo o caminho mudado. Por quê?
Somos movidos por ideias — nem sempre precisas, nem sempre racionais — assim como por sentimentos nem sempre conscientes, nem sempre bons. Nem uns e nem outros, constantes. Somos o resultado de imagens mentais e sentimentos sempre em atualização, em um esforço permanente para construir em nossas mentes a ideia de um eu; de dar ao amontoado de sensações e ideias alguma organização minimamente estável.
Assim nos fazemos e nos construímos. Criamos um eu ora inclinado às sensações, ora inclinado às ideias, interagindo com uma realidade material indiferente aos nossos sentimentos e ideias.
Por ser a realidade indiferente, há quem reaja a ela também com indiferença. Alimenta em si ilusões de que o mundo não é como é, mas como deveria ser, conforme seus desejos. Abraçam ilusões na ilusão de manter a integridade de sua existência e felicidade mesmo quando a realidade os impede.
Outra lição estoica: aceite a realidade. Não lute contra os fatos — compreenda-os, adapte-se. Não há felicidade na ilusão. Nela encontramos apenas a procrastinação em viver de fato; cedo ou tarde, ela se impõe. E quanto mais fugimos dela, mais dolorosa será sua imposição.
Na triste realidade da pandemia, estamos divididos entre os que aceitam a realidade e os que a ela reagem. Os primeiros buscam a felicidade, adaptando-se às circunstâncias; os segundos buscam a felicidade, enfrentando a realidade.
Contudo, a equação moral traz outra variante: os outros. A realidade não é formada apenas de prédios, bichos, engenhocas e pedras — tem gente, também, que nos afeta muito mais que os prédios, os bichos, as engenhocas e as pedras. A pandemia também os põe em evidência.
Com máscaras e isolamentos, protegemo-nos, mas protegemos os outros também. Se o outro não se protege, expõe-nos ao risco de uma morte sufocante. Ninguém está mais sozinho no risco.
Quando aquilo que fazemos afeta somente a nós mesmos, nossos pensamentos e sentimentos são soberanos para deliberar sobre o que fazer. No entanto, quando afeta outros seres pensantes e sensíveis, é diferente. Nossas ideias e sensibilidades não são mais valiosas que as dos outros. Nossa humanidade não é mais importante que a dos outros.
Presos às próprias ilusões e medos, impulsionados pela mesquinhez de querer se dar bem ou pela arrogância de se achar melhor do que os outros, muitos tentam se impor. Com a fúria de quem luta contra as pedras, proclama sua vontade como soberana a outras vontades, à lei e à ciência. Não há autoridade política ou moral que se reconheça, exceto aquelas cujos princípios coincidem com a própria vontade. Desumanos negam a humanidade alheia como negam a realidade.
Como o vírus é indiferente a tudo isso, tanto os que respeitam a realidade — e os outros — quanto os que a ignoram correm o risco de adoecer e morrer de covid. Todavia, nessa luta, os primeiros tombarão, tendo se esforçado por sobreviver — talvez, mortos pela irresponsabilidade alheia. Os segundos tombarão depois de terem corrido de costas ao encontro da morte.
Nosso aperfeiçoamento moral depende de nossa consciência da realidade, dos outros e de nós mesmos. A convivência da morte deveria ensinar-nos algo a respeito, provocar-nos o desenvolvimento moral como professores provocam o aprendizado de alunos. Porém, como em toda sala de aula, há os que por ela passam sem nada aprender.
Júlio Pompeu é filho de mineiros, mas nasceu no Espírito Santo e morou em Brasília, São Paulo e Rio. É doutor em Psicologia, escritor, professor de Ética do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e palestrante habitual nos cursos da Casa do Saber no Rio e São Paulo. Foi secretário estadual de Direitos Humanos do Espírito Santo de 2015 a 2018. É coautor do livro “A Moral da História” (Citadel), com o professor Clóvis de Barros Filho, a ser lançado em 29 de março.