Não gosto da expressão “fake news”. Ela foi criada, ou ao menos popularizada, pelo ex-presidente dos EUA, Donald Trump, com o propósito de desqualificar jornalistas. É interessante notar que ele costumava usar a expressão na segunda pessoa: “You’re fake news!” O ataque é pessoal, direto. Não se refere a tal reportagem, ou tal jornal, ou tal canal. É sobre uma pessoa, um rosto: “Você é fake news!”
Sei que a língua inglesa tem maleabilidades que nosso português não tem; ainda assim, permito-me descontraída perplexidade. Como alguém pode ser “fake news”? Isso me sugere uma personagem fantástica, divina. Calma! Falo divindade no sentido pagão, politeísta. Um deus com “d” minúsculo, um ser que encarna a desinformação, e a desinformação é o propósito maior de sua existência. A mitologia nórdica tem Loki, personagem que se tornou imensamente popular graças à sua adaptação cinematográfica na franquia Marvel.
No entanto, o carisma do intérprete fez com que os autores redimensionassem a personagem. Loki foi se tornando mais tridimensional, menos mítico, mais humano. Esse “Pai da Mentira” deixou de ser vilão estereotipado para se tornar irresistível anti-herói. Ele é como é por inveja e despeito: o que deseja de fato é o reconhecimento e respeito de seus pares. Quem não sente essa empatia? As mentiras são apenas o instrumento que ele conhece e domina: são meio, não fim. A vida imita a arte?
Acredito que vida e arte estão em constante “brainstorm”, trocando impressões. A arte precisa fazer sentido; a vida quase nunca faz. Daí o charme das mais infames “fake news”, das mais insólitas teorias de conspiração. Por mais rocambolescas que sejam, fazem sentido como narrativas. Todas as peças se encaixam — não sobra espaço para o caos da realidade. Não há exemplo mais pertinente que a Covid-19. Especialistas dos mais diversos alertam, há décadas, sobre a grande possibilidade de uma pandemia viral e sobre como este mundo globalizado está despreparado para enfrentá-la (ocorre-me agora um charme semântico do terraplanismo: nada pode ser menos globalizado do que uma Terra Plana).
A ameaça, enfim, se concretizou e provou ser tão ou mais devastadora do que previram. E aí? Como lidamos com isso? A pandemia escancara a fragilidade da nossa majestosa civilização. Por mais que se tente, não é possível disfarçar: as pernas da mentira tremem e se tornam cartunescas de tão curtas. Donald Trump disse bem: “Estamos em guerra contra um inimigo invisível, vejam só.”
Para uma sociedade acostumada a achar que “está tudo sob controle, as instituições continuam funcionando, estamos no caminho certo”, é uma posição muito desconfortável, desesperadora, até. Mas, se o coronavírus é um “vírus chinês”, gerado em laboratório por comunistas insidiosos, com o claro objetivo de desestabilizar as nações liberais do Ocidente, fica bem mais fácil lidar com a situação. O “inimigo invisível” passa a ter um rosto. Passa a ter uma razão de existir. É culpa dos “amarelos” e dos “vermelhos”, esses vilões. Eles têm objetivos ocultos. Vamos provocá-los, vamos xingá-los. Eles vão reagir. Teremos assim um conflito humano, algo com que conseguimos lidar.
O vírus não está nem aí pra isso; cientistas se apressam em classificar. Até pouco tempo atrás, os vírus viviam (ou não viviam) num limbo. Não eram considerados nem seres vivos nem não vivos. Isso está sendo repensado. Até agora, parece-me, o coronavírus está dando um banho na humanidade, tanto em versatilidade quanto em criatividade. O vírus não recebeu nenhum convite, não foi eleito nem festejado, mas conquistou todo mundo. Pode ser chamado de ditador? Pode ser chamado de genocida? Ou é preciso um rosto?
Depois de um papo com o ator, diretor, professor, contador de histórias Isaac Bernat, decidimos oferecer ao público dois rostos, que são um. Pensei numa história sem decidir a mídia. Pensei em duas personagens protagonistas, cada uma em seu lugar. Entendi que elas deveriam ser interpretadas pela mesma atriz — um artifício incomum no audiovisual, mas corriqueiro no teatro.
Não estamos aqui pra fazer confusões ou revoluções; portanto, o lugar desta história seria o teatro, o palco. Aí veio a pandemia, e o palco tornou-se inacessível. Mas teimamos; tarde demais pra voltar atrás. Fizemos um filme que não é um filme, uma peça que não é uma peça, num palco que não é um palco, sobre uma atriz que se propõe a mergulhar tanto na sua personagem que deixa de ser atriz, e a personagem é uma assassina que talvez não seja uma assassina. A personagem é uma pessoa viva, encarcerada, revoltada com sua própria história. A atriz quer interpretá-la com verdade, isto é, também, uma impossibilidade.
Guilherme Siman é ator, roteirista (“Filhos da Pátria” e “Confissões de Mulheres de 50”) e estreia a peça “Diva” (@divateatroline), nesta quinta (25/03), no YouTube. Inspirada no cinema noir dos anos 1950, o espetáculo foi produzido durante a quarentena, com direção do premiado Isaac Bernat. Siman é formado pela CAL e integrante da Cia. Teatro de Extremos desde 2005.