Minha mãe não era de falar alto com meu pai ou conosco, os filhos. Ela fuzilava com o olhar, apenas.
Cravava os olhos e mandava mensagens telepáticas. Não do tipo “Vá para o seu quarto!”, mas algo como “Se você não largar imediatamente esse talher, levar seu prato para a cozinha, der boa noite às visitas, escovar os dentes e se deitar usando o pijama azul que está na segunda pilha da gaveta do meio da cômoda, amanhã você vai ver o que é bom para tosse!”.
E a gente entendia.
Meu pai andava armado. Um coldre na cintura, outro junto à axila e um terceiro na canela. Vê-lo se paramentar com três armas sob o terno, para sair para o trabalho, fazia parte da nossa rotina. Ele era juiz no sertão de Minas, terra de pistoleiros. Ali, se impunha pelo rigor na aplicação da lei e pela (suposta) pontaria (porque, até onde sei, nunca precisou disparar um tiro no exercício da função). Mas munição jurídica sozinha não daria conta — era preciso contar com a de outros calibres.
Já minha mãe tinha uma Mauser, um Taurus, um rifle, uma escopeta, uma carabina, uma bazuca e um míssil nuclear — tudo naquele par de olhos verdes.
A única forma de (tentar) escapar da sua alça de mira era não fazer contato visual. Dar uma de sonso, de cachorro repreendido, e não cruzar com os verdes canos fumegantes dos seus olhos. Que iam da doçura à artilharia pesada num arquear de sobrancelha, numa dilatação quase imperceptível da pupila.
Meu pai tinha que falar quando precisava de alguma coisa. Minha mãe calava. E era em silêncio que dava ordens, acabava com a fuzarca, mandava um largar o que estava fazendo e ir fazer outra coisa, metralhava ou cobria de carícias, aprovava ou bania. Fosse uma arena romana, dispensaria o polegar — e o gladiador que tivesse olhos de lince e intuição mais afiada que a espada para entender se era pra decapitar o oponente ou sair abraçado com ele combinando um rolê mais tarde, nas catacumbas.
Suponho que os olhos verdes ajudassem nessa tarefa. Hoje, desbotados pelo tempo e pelo Alzheimer, estão como quartzo — foscos, mudos, amortecidos. Mas eram de esmeralda, cintilantes. E cada virar de olhos era um giro no tambor. Cada mirada, um estampido.
Minha avó, mãe da minha mãe, também tinha olhos assim, cápsulas de mistério, feitos para economizar palavras. Não olhos súplices de cães, mas olhos felinos. De quem não discute, não reclama, não explica. Olhos não de quem se esquiva, mas de quem aciona o gatilho.
“Oh, tende cuidado com o ciúme. É um monstro de olhos verdes que zomba da carne de que se alimenta”, diz Iago a Otelo. Shakespeare deveria conhecer bem esses olhos, mais raros que os negros, os castanhos, os azuis. São olhos de ascendência, de silêncio, de mando. De quem não precisa sentir ciúme — porque sabe-se provocadora deles.
Não herdei aquele musgo na íris. Nem o dom da telepatia. Minha arma são as palavras, como as do meu pai eram (literalmente) seus revólveres.
Muda — desarmada, só com o olhar — minha mãe mandava.
E manda quem pode, obedece quem tem cromossomo XY.