A primeira entrevista do ano é com Nilton Bonder, rabino com conhecimento dos códigos do alto mundo espiritual, digamos assim. Bonder é sempre desejado e importante aqui, mais ainda neste momento em que a gente anda ressignificando tudo. Não à toa, seus livros voam das prateleiras — são mais de 20, um prêmio Jabuti em 2000, além de outros internacionais —, suas palestras têm espera, empresas desejam sua consultoria e as aulas sobre cabala lotam no Centro Cultural Midrash, no Leblon.
Ele foi personagem importante nesta pandemia — mudou a vida de muita gente em reuniões pelo Zoom, chegando a ter 300 pessoas, por vez, na telinha. Enquanto isso, lançou o livro “Cabala e a Arte de Preservação da Alegria: Preservando o Gosto, a Sinceridade, a Autenticidade e a Graça” (editora Rocco), com orelha do humorista Marcelo Madureira. É o terceiro de sete, da série “Reflexos e Refrações”, em que Bonder une a Cabala a questões cotidianas em parábolas, contos e vivências pessoais. Bonder é o rabino mais antigo em atividade no Brasil (30 anos), apesar do perceptível frescor.
Qual a diferença de 2020 para os outros anos da nossa vida?
É que 2020 não foi um ano, quero dizer um ano desses que se sucedem; 2020 foi um evento, assim como 2001 foi um ano-evento a partir do dia 11 de setembro. Aquele ano — podemos até usar esta metáfora do tempo — caracterizou-se não como um ciclo (ano), mas como uma data particular, próprio de um evento. Então, o ano de 2001 aconteceu todo na queda das torres gêmeas, no 11 de setembro. O mesmo aconteceu com 2020, porque o ano aconteceu no dia 17 de novembro de 2019, data em que os chineses identificaram a primeira transmissão a humanos. Por isso, esse ano foi contaminado por algo de 2019, o tal covid-19, que nem de 20 era! Esses anos-eventos são aqueles que Confúcio, há quatro mil anos, definiu ao dizer: “Quando pensamos que sabemos todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas!”. Um ano-evento significa “perguntas totalmente novas”! Quanto a isolamento, essa palavra pode remeter ao terrível ou ao maravilhoso.
Podemos tirar algo de bom do isolamento?
Claro que o isolamento compulsório, mandatório, é uma limitação difícil. Qualquer prisão ou jaula afetam afetos e liberdades: isso é cruel para a vida. Sabemos, ao mesmo tempo, que o isolamento oferece refúgio ao equilíbrio, um porto seguro à serenidade. E não há nada mais propício para um ano de “novas perguntas” que o reencontro consigo que o isolamento oferece. Tenho certeza de que teremos relatos de horrores do isolamento, mas também de catarses e prodígios do isolamento.
Você acabou de lançar o livro “Cabala e a Arte de Preservação da Alegria: Preservando o Gosto, a Sinceridade, a Autenticidade e a Graça”. Vamos por partes: o que é o livro? Teria como falar um pouco de cada um dos itens que dá título ao livro?
Esse livro é parte de uma série de sete temáticas. Faço um estudo sistêmico (Cabala) de cada tema. Já saíram os livros sobre o Risco (“Cabala e a Arte de Manutenção da Carroça”), sobre a Cura (“Cabala e a Arte de Tratamento da Cura”), sobre a Alegria (“Cabala e a Arte de Preservação da Alegria”) e, em março, sobre o Sexo (“Cabala e a Arte de Apropriação do Sexo”). Os outros três — Afeto, Poder e Ritmo — estão na fila do projeto. A ideia é, em cada livro, mudar uma chave do senso comum em relação a cada um dos conceitos-tema. Por exemplo, no livro do Risco, a chave é mudar do modo “medo/perigo” para “oportunidade/brecha”. O Risco representa aberturas ou conjunções circunstanciais com a potência de ampliar e evoluir. O Risco é o combustível da vida! Já no livro sobre Cura, a chave não é o remédio ou a salvação, mas o tratamento. Tudo que tem cura e o que não tem cura, tem tratamento; pode ser tratado e merece ser tratado. Tratar não significa resolver ou solucionar definitivamente – é tão somente dar tratamento, saber e oferecer tratamento. E, no livro da Alegria, separar definitivamente alegria e felicidade; dissociar essas palavras é basilar para a qualidade de vida. A alegria, sendo uma disposição, independe de coisas boas ou ruins que aconteçam — é apenas o desejo de viver a vida e seus sentimentos, algo como o apetite e o comer. Comer, paradoxalmente, acaba com o apetite. Claro que comer atende à fome, assim como as felicidades atendem às fomes de nossos sonhos. Porém, se você não cuidar de seu apetite com refinamento e equilíbrio, vai viver de fast-food, infantilizado no agridoce da Coca-Cola.
Seus livros anteriores, por exemplo, a “Cabala e a Arte de Manutenção da Carroça: Lidando com a Lama, o Buraco, o Revés e a Escassez”, teria o que a ver com o momento?
Sim, acho que Risco, Cura e Alegria têm tudo a ver com este momento; não foi oportunismo, apenas que os sete temas abordados são o tecido da vida. O momento que vivemos é sistêmico e traz a novidade de riscos que são representados pela escassez — lama, buraco e revés estão sempre por aí, na estrada da vida. Qualquer ano nos traz esses desafios, porém só alguns, os anos-eventos, trazem escassez. O interessante do Risco é que ele provoca movimentos automáticos de defesa e proteção, o que, em ocasiões, é apropriado, mas, em muitas ocasiões, não é! Isso é contraintuitivo. Tire isso apenas do plano do risco do mercado financeiro e pense no risco da arte, do artista. Quem são os artistas? Pessoas que investem na vida e que fazem escolhas muito arriscadas. Eles sabem mudar a chave que, no caso da escassez, é pensar em abundância, e não em insuficiência. Abundância não é gastar mais quando está faltando, mas o foco em novos poços a serem abertos, ao invés de tornar-se um especialista em conta-gotas. Sim, isso pode gerar distorções, como o consumismo ou a predação do meio ambiente; ou pode manifestar um potencial maior para a adaptabilidade e para a evolução. Quando o risco está adequado ao desafio, o resultado é a vida, e não a destruição ou o desperdício. A arte do risco não é dominada pelo jogador.
Como manter a alegria em momentos como o atual?
O mais importante é saber que ninguém ou nada podem tirá-la de você. Como o apetite, como o desejo, a alegria é sua. A covid ou qualquer outra vicissitude da vida não interrompem a alegria, ao contrário, demandam mais alegria. Não estou falando de sermos “bobos alegres” e rir quando coisas graves e difíceis estão ocorrendo, mas de viver intensamente o que o momento oferece. A fruta da estação da vida desperta a alegria. A tal tristeza (a ausência de alegria) é sonhar com a fruta da outra estação – o morango do verão ou o abacaxi do inverno podem até ser alcançados, mas vão colocar o gosto da vida num lugar pequeno e improvável. Qualquer sentimento verdadeiro, produto do viver, interessa a quem tem disposição, a quem preserva saudavelmente a relação com sua alegria.
Falar em mundo, Júpiter e Saturno alinharam-se. Para a Astrologia, este é um momento de virada. Sob a sua visão, podemos considerar assim?
O pensamento mágico só é importante para realçar o deslumbramento pelo Universo. As coisas do mundo são maravilhosas e fascinantes, e não perder esse senso é fundamental. Achar que são para você, no entanto, além de alimentar megalomanias, distraem você dos verdadeiros alinhamentos, que são seus desejos, discernimentos e compromissos. Fique atento para dentro quando sua alma alinhar-se com algo para fazer ou não fazer. Ali está o céu e as constelações que falam de você com o Universo ou com Deus. Como escrevi para um amigo: a nau segue… apenas nós é que ficamos hipnotizados com nossos eventos.
O que diria às pessoas neste início de 2021? E o que espera deste novo ano?
Espero, como todos, que possa deixar de ser um ano-evento, dominado por uma única eventualidade, e voltarmos à multiplicidade de questões e adversidades da rotina. Nenhum ano, porém, será estelar ou utópico; devemos aprender a agradecer a simples ausência de um evento dominante. Como diziam os rabinos em sua bênção: “Que você tenha muitos problemas! Porque, no dia em que tiver um único, vai compreender as bênçãos ofertadas!”