Logo depois da chegada da pandemia ao Brasil e assim que entramos em isolamento social (eu e Julia Lund), a última coisa que imaginamos seria criar um novo trabalho. Isso porque vínhamos ensaiando, há dois meses, a peça “Na boca do vulcão”; então, na semana da nossa estreia no Sesc Av. Paulista, marcada para 20 de março, todos os teatros foram fechados. Estávamos embarcando, indo para o aeroporto, então tivemos que dar meia-volta, parar tudo e mergulhar numa ressaca que, até agora, não terminou. Foi e continua sendo difícil – um luto depois de uma luta.
Esse projeto havia sido contemplado no “Programa Banco do Brasil de Patrocínio 2019/2020 — Edital Centro Cultural Banco do Brasil” por conta de seu mote ambiental — ele é parte da pesquisa contínua da Polifônica sobre os impactos humanos na Terra; em 2015, com “Estamos indo embora…”, talvez tenhamos inaugurado o debate do Antropoceno na cena teatral do País, que, até agora, infelizmente, ainda não se mostra muito interessada ou preocupada com o que me parece o epicentro do colapso civilizacional que vivemos.
Recebemos justificativas burocráticas para um ato, possivelmente, de censura velada. Então, acho que a ressaca dessa dupla interdição — primeiro o CCBB e, depois, pela eclosão da pandemia —, somada ao cenário cada vez mais nebuloso para os realizadores de teatro no País, fizeram-me pensar em milhares de alternativas profissionais e de vida. Mas não teve muito jeito.
Depois de algum tempo de respiro, eu e a Júlia retomamos o fôlego e começamos a criar um novo trabalho, o solo “Tudo que Brilha no Escuro”. Olhando em retrospectiva, acho que esse trabalho nasceu da nossa vontade de estabelecer um contraponto a essa atmosfera asfixiante em que vivemos, e buscamos sobreviver todos os dias. É uma reação que opera no campo do sensível, do simbólico, dos afetos. Uma resposta que afirma a vida, a necessidade e a vontade de viver em meio às forças de morte que tentam nos governar no País, ou melhor, nos oprimir, deprimir e, então, matar.
O percurso dramatúrgico da peça é uma metamorfose, uma reinvenção dos sentidos que sustentam a vida da persona-personagem que a Júlia incorpora. É uma busca, um gesto de aproximação daquilo que nos faz querer continuar a viver. “Tudo que brilha no escuro” é essa tentativa, uma abertura dos canais sensíveis.
Decidimos fazer esse trabalho sem nenhuma verba ou apoio, por absoluta necessidade existencial e, também, financeira; afinal, os trabalhadores das artes vivas foram os primeiros a ter seus espaços de trabalho fechados e, ao que parece, serão os últimos a poder voltar a trabalhar do modo como trabalhavam. Então transformamos um quarto da casa num misto de palco, set de filmagem, estúdio de fotografia, coxia e cabine de operação. É uma experiência híbrida, entre o teatro, o cinema, a fotografia, a performance, a literatura dramática e a música enquanto trilha cinematográfica.
Nesse contexto da pandemia, eu e a Júlia, que criamos e vivemos juntos, tentamos transportar para a obra certas dimensões que atravessam o nosso cotidiano, como as noções de presença, de atenção, de cuidado e de afeto. Cuidar do outro no sentido de reconhecer e lidar com as investidas das pulsões de morte ou negativas que nos atacam, os medos, pânicos, tristezas, o nosso desamparo estrutural, cósmico, que se vê agora potencializado.
É preciso saber que certas oscilações de ânimo ou as nossas precipitações “negativas” fazem parte desse processo difícil que estamos vivendo sob a pandemia. A partir daí, então, é preciso buscar, no dia a dia, fortalecer o outro em suas pulsões vitais e disposições criativas – seus interesses, desejos, inclinações. Em três atos: compreensão, amor e estímulo.
Luiz Felipe Reis é diretor, dramaturgo e cofundador da Polifônica Cia., além de jornalista e curador de artes cênicas. Desde 2015, atua como curador e codiretor artístico do festival Cena Brasil Internacional, que acontece anualmente no CCBB do Rio. “Tudo que Brilha no Escuro” estreia neste sábado (16/01), às 20h, com ingressos no Sympla,