As relações amorosas não são “politicamente corretas”; isso está estabelecido para todos os níveis socioeconômicos. De algum modo, o que mantém um casal tem relação direta com o desejo que os uniu. Esse desejo é determinado pela história subjetiva de cada um, isto é, a vida edípica das crianças que teriam sido.
Para explicar de modo simples, cada um de nós está comprometido com cenas marcadas, profundamente, no nosso inconsciente. Essas cenas de que não temos lembranças retornam em representações da vida adulta. O problema é que estamos fixados a situações que não compreendemos, justo porque elas nos remetem a momentos da nossa infância em que teríamos sofrido passivamente.
Quer dizer: as situações restam incompreensíveis e fortemente fixadas, obrigando-nos a fazê-las retornar, na tentativa de compreendê-las. Talvez, por isso, seja tão frequente sujeitos intelectualmente bem-informados mas incapazes de lidar e ou reagir a cenas de violência.
Muitos são os fatores que contribuem para que uma relação seja civilizada, com respeito mútuo entre os implicados. Brigas, mal-entendidos, desavenças, barracos, tudo habita, isso que faz parte da vida cotidiana dos casais em todas as classes sociais. Tem-se um pouco de tudo e, às vezes, excessos. Os humanos estão fadados à insensatez, sempre à beira de um ataque de nervos.
O encontro amoroso é uma penumbra que se deixa rasgar pela insolência fortuita de um gozo sexual que não é simpático às regras estabelecidas pela vida pública. Em todo caso, isso é angustiante para um casal, pois é o que produz uma magistral erosão nas inocências não nascidas que acompanham cada um de nós. É daí que brotam os desejos insensatos, insubmissos, contrariando toda e qualquer norma preestabelecida. No entanto, isso produz uma verdadeira catástrofe de onde emanam sinais evidentes de uma subversão da ordem moral: “Meu Deus, estou casada com um monstro, e nem mesmo eu sabia!”; “Mas estou casado com uma louca. Como nunca enxerguei isso?”
Seja como for, toda relação amorosa é aquela que carrega consigo o melhor e o pior. Qual a justa medida do amor entre duas pessoas? Quais os reais limites de algumas emoções, por vezes, desvairadas?
Numa relação a dois, o amor é tinto de impurezas. Ele é celeiro de uma verdade particular, algo íntimo habitado de emoções rebeldes, de sentimentos distorcidos, de caprichos insensatos, de quebra dos parâmetros da lei; vidas, muitas vezes doentes, paixões cruéis, amores desgraçados. Muitos casais vivem como se estivessem numa arena onde um bate, e o outro apanha. Violências temperadas de tolerância. Por quê?
O discurso público nos oferece critérios do que deve ser uma relação civilizada, suportável, mas ele não tem como garantir os meios para cumpri-la, porque não é certo que ele seja incluído na cena privada; o privado do casal é sempre invadido pela cena privada, inconsciente, de cada um. Há um distúrbio na relação entre o público e o privado, a despeito das boas intenções. Algumas pessoas mantêm uma relação pacífica com a lei; outras vivem conflitos arrasadores com ela.
O público não funda o privado, mas a recíproca é verdadeira: o privado funda o público. Os meios para que se cumpram as leis advêm do erotismo entre um homem e uma mulher, daquilo que funda a relação entre os pais de uma criança. Isso que esta desconhece e que, no entanto, reflete-se e a fixa na cena infantil e familiar. É daí que advém o enigma de certos comportamentos na vida adulta, de sujeitos conflitados com aquilo que acham politicamente correto e aquilo que são impelidos de fazer. Seja vítima, seja algoz, todos estão vitimados por aquilo que desconhecem o que fazem.
O que se espera de um casal é que faça prevalecer o bom uso da palavra. Isso equivale dizer que o sexo deve realizar-se tanto em sua vertente real quanto política, desprovido de pudor e meios-termos. Chama-se a isso respeito entre homem e mulher!
Todavia, nem sempre há essa possibilidade. Duas pessoas se conhecem, tornam-se íntimas, os sentimentos ficam à flor da pele, invasões de domicílio. Na intimidade, não existe lobo sem cordeiro, denunciando que não existe um sem o outro — amor e ódio convivem muito bem. Tudo são reedições do desconhecido da vida inconsciente, que vivem sem fronteiras; são vidas amargas, nossos amores desgraçados, o drama de cada dia. A pandemia escancara esses sentimentos de forma exacerbada; afeta a depressão, que, por sua vez, traz conflitos que permeiam as relações amorosas — basta olhar as relações cotidianas entre as pessoas: casais, irmãos, amigos, colegas, etc. É isso aí!
José Nazar é psiquiatra e psicanalista. Acaba de completar 45 anos de profissão e está lançando o filme “Só depois”, onde conta sua trajetória e a chegada da psicanálise lacaniana ao Brasil, da qual foi o principal propagador. Fez mestrado no Instituto de Psiquiatria da UFRJ; fundou a Escola Lacaniana de Psicanálise Rio, Vitória e Brasília; e é editor-chefe da Companhia Freud Editora.