A escola parece ter como meta nos fazer odiar a língua portuguesa.E ter horror à matemática.
E uma crise de narcoléptica à história e à geografia.
E aversão à química.
Tirando a aversão à química, que é plenamente justificável (o inferno há de ser um lugar onde haja prova de química toda segunda-feira), o resto é pura incompetência — ou falta de didática,
ou que nome se possa dar àquele talento inato que têm alguns mestres para nos manter a prudente distância do conteúdo que dizem querer nos transmitir.
Segundo Felipe Neto, “forçar adolescentes a lerem romantismo e realismo brasileiro é um desserviço das escolas para a literatura”.
É e não é.
É porque forçar alguém a fazer algo no caso da literatura, é mais que um desserviço: é uma desnecessidade.
Para que forçar se é possível convencer, atrair? Se motivos não faltam para se amar os livros?
O problema não está no romantismo, no realismo, em Álvares de Azevedo, em Machado de Assis, mas em tentar enfiá-los goela abaixo. Transformá-los em dever de casa, em fardo, em imposição.
Sabem a diferença entre transar e manter relações? Pois a escola tende a transformar o grande tesão da literatura, o orgasmo da poesia, em obrigação conjugal. O que podia ser o amor da minha vida vira “dona patroa”, vira “esse traste”.
Quem assistiu a “Sociedade dos Poetas Mortos” há de se lembrar do professor John Keating (Robin Williams) fazendo com que os versos de Walt Whitman (“O Captain! my Captain! rise up and hear the bells”) ganhassem sentido e cada aluno se erguesse, subisse na carteira (para ver o mundo por outro ângulo) com um sino, todo seu, ecoando dentro de si.
Dar a um adolescente a oportunidade de conhecer o romantismo brasileiro é abrir-lhe o coração para o Castro Alves de “O navio negreiro”.
“Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!…
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! …”
É apresentá-lo ao finíssimo humor de Machado de Assis (“Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens, que de um terceiro andar. “, “Há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres: é serem curtos. ”).
Eu tive horror à matemática até descobrir que o que me horrorizava era o autoritarismo em que ela vinha embalada. Um bom professor a despiu e pude ver que ali havia lógica, harmonia, beleza, perfeição.
História era uma enfiada de nomes e datas até uma professora me revelar que se tratava, na verdade, do grande romance escrito pela humanidade, do qual todos éramos protagonistas.
A literatura? Essa me pegou na infância, nas “mais belas histórias”, nas “mais belas poesias”, no Antigo Testamento do catecismo, nas caçadas de Pedrinho, nas reinações de Narizinho, no meu pé de laranja-lima. Veio com um José de Alencar ali, um Gregório de Matos acolá. Uma “Bárbara bela, do Norte estrela, que meu destino sabes guiar”; um “Sou bravo, sou forte, sou filho do Norte; meu canto de morte, guerreiros, ouvi”. Que sei até hoje, de cor.
Álvares de Azevedo, Machado de Assis, Gonçalves Dias, Alvarenga Peixoto, e todos os barrocos, parnasianos, simbolistas, árcades, concretistas, naturalistas, modernistas, regionalistas nos permitirão viver tantas vidas, experimentar tantas almas.
Um mau professor – um burocrata, um caga-regra – será sempre um desserviço, transformará um teorema numa tortura, uma Revolução Industrial num tédio, um Padre Vieira num purgatório.
Mas a literatura — como a música — é para criança, adolescente, adulto, idoso. Fazer desse prazer uma chatice devia ser crime inafiançável.
Química, não. Química vai ser sempre um saco. (Só para constar: nunca me formei em psicologia por causa da química. Larguei Bioquímica no 1º período; não pude cursar Fisiologia no 2º, nem Neurofisiologia no 3º e uma coisa foi prendendo a outra até eu me tornar um caso perdido. Forçar um pós-adolescente a memorizar sínteses de ácidos nucleicos é um desserviço das faculdades. Mas na época — para o bem e para o mal — não havia um Felipe Neto para levantar essa treta.)
Ler é preciso. Decorar cadeias de carbono não é preciso.
(Disclêimer: Este texto contém algum sarcasmo, que é um derivado do deboche, tendo por reagente uma pitada de ironia. Nenhum amante da química foi ferido durante a sua digitação.)