Imaginemos viajantes provenientes de uma galáxia distante chegando hoje à Terra e se encontrando com a espécie humana. De imediato, os viajantes constatam que essa espécie conversa aterrorizada, por todo o Planeta, sobre acontecimentos que se repetiram milhares de vezes em sua História, e que chamam de “guerra”.
Assim, fala-se o tempo todo de quantos morreram, quantos estão no hospital, do descontrole econômico, escassez de empregos, fome, crianças sem aulas, medo de cada um ser o próximo atingido e do fato de que todos podem ser inimigos portadores da arma exterminadora. Existe um alerta geral: “Cuidado! Seu filho, seu vizinho, seu amigo, todos podem ser seu inimigo”. Críticas ferozes são feitas por toda parte, e ninguém sugere soluções além de aterrorize, aterrorize…
Investigando um pouco mais, os astronautas constatam que a “guerra” da espécie significa estar totalmente atacada e subjugada por uma doença, com bilhões de indivíduos presos a uma espécie de energia teogônica — um vírus misterioso decidindo, como um deus, sobre a vida dos indivíduos do Planeta.
A Teogonia constituía, com os poemas de Homero, a cartilha na qual os antigos gregos aprendiam a ler, a pensar, a entender o mundo e a reverenciar o poder dos deuses. Outros povos, em outras épocas, inventaram (ou imitaram) coisas parecidas e também produziram cartilhas de salvação e redenção. Essas cartilhas viraram cartilhas políticas, cada qual prometendo mais salvação e muita redenção. Elas se utilizam de mitos disfarçados de ideologia para expor velhas ideias falidas como se fossem ideias novas. “Que trapaça!” — constatam os astronautas.
Passados milênios, parece que ninguém aprendeu a essência de um simples movimento de chegar e partir, vir e ir: a realidade da viagem da vida, que, no final, não tem nem salvação, nem redenção — apenas um legado de criação para valer a pena ter sido vivida.
Imagino que o desconhecimento desse fato rudimentar deixaria os viajantes de outra galáxia perplexos. Eles estariam se perguntando: “Por que essa espécie não aprende com a experiência, uma vez que sua genética organizou-se para sobreviver através do aprendizado? Por que a capacidade para pensar — que deriva desse aprendizado — não se tornou natural para essa espécie?”
Sem respostas, talvez os astronautas ficassem ainda mais perplexos ao perceber que essa incapacidade para pensar causou misérias e infâmias atrozes, horrores infindáveis, crimes hediondos, inquisições, genocídios, apenas pelo fato de que alguém achou que era um deus e acreditou que possuía uma verdade que o colocava acima do bem e do mal.
Imaginemos agora que os astronautas — nesta altura, totalmente decepcionados com os habitantes desse planeta subjugado — constatam que pouquíssimos indivíduos utilizam-se da teogonia viral para se manter como deuses: os governantes. Quanto desperdício de vida inteligente! E que terrível constatar que, entre eles, estão os indivíduos da espécie mais esdrúxulos física e psiquicamente.
No final da pesquisa, na hora de partir, os astronautas se perguntam se há alguma coisa em comum com os terráqueos. Talvez, a única coisa seja a atividade de navegação.
Tal atividade, seja por mares desconhecidos, seja pelo universo desconhecido, sempre motivou o ser humano.
Fernando Pessoa recorda-nos a frase que traduz esse espírito de busca; uma frase que, na realidade, pertenceu ao famoso general romano Pompeu: “Navegar é preciso, viver não é preciso.”
O general romano usava a frase para encorajar seus marinheiros assustados, e Pessoa refere-se a ela como vinda dos antigos navegadores portugueses. Ele nos fala de algo muito importante para vencer o medo: quero para mim o espírito dessa frase de forma a se casar comigo. Aí eu digo: “Viver não é preciso; o que é preciso é criar.”
Criar é pensar. É suportar a viagem da vida, porque a verdade não é um nome, mas um discurso. E é essa falta de um nome que torna tão difícil a quem teria, de fato, algo a dizer tomar por si mesmo a palavra. Os espertalhões e tolos sempre falam em nome do mercado, da crise, de pseudociências, de siglas, instituições, jornais, partidos e ministérios – frequentemente, sem ter nada a dizer.
Arnaldo Chuster é psiquiatra e psicanalista, membro de todas as Sociedades Brasileiras da sua área e ainda do Instituto Psicanalítico de Newport, na Califórnia. Tem consultório em Ipanema e costuma fazer palestras no Brasil inteiro. É também um estudioso do trabalho do psicanalista britânico Wilfred Bion.