Era 8 de fevereiro de 2019. Inesquecível o sentimento experimentado naquela manhã, diante das notícias que não paravam de chegar. Dez adolescentes mortos, em um incêndio no contêiner que servia de dormitório, em um dos maiores clubes de futebol do Brasil.
O horror era potencializado pela chegada de novas informações: em uma vistoria, a vulnerabilidade e os riscos haviam sido apontados anteriormente. Ainda assim, era aquele o local, sem janelas e sem portas de emergência, onde os meninos passavam as noites, entre treinos e jogos.
Athila, Arthur Vinícius, Bernardo, Christian, Gedson, Jorge Eduardo, Pablo Henrique, Rykelmo, Samuel e Vitor haviam conseguido realizar o sonho de tantos outros jovens da sua geração. O acolhimento ao “ninho do urubu”, era um passaporte para a esperança, para as estradas que poderiam ser abertas para a família e para o futuro, com os dribles e a bola no pé.
Não se pode chamar de tragédia um evento previsível e esperado. Chama-se irresponsabilidade. Irresponsabilidade e dor. Sem que a vida pudesse ser devolvida aos garotos, o que restava, além do sofrimento inominável, era a obrigação de indenizar os danos experimentados pelos familiares.
Vivemos em uma sociedade excessivamente judicializada. Da escolha da escola para os filhos, até a eleição para o Congresso, do cancelamento de uma linha telefônica a uma briga banal de vizinhos, tudo tem sido remetido ao Judiciário. O fenômeno indica o adoecimento social, uma forma de infantilização que impede que cidadãos e empresas pactuem formas de convívio ético e humano.
Não foi diferente com o Flamengo e com algumas das famílias que exigem, legitimamente, reparação. Esperava-se, de um clube que se alimenta do sentimento de paixão da sua torcida, e do desejo de milhares de meninos que ainda sonham com a camisa rubro-negra, uma solução adequada para solucionar o conflito.
Ao escolher o caminho dos processos judiciais, longe de encontrar a justa medida e o justo valor para as indenizações, se expôs ainda mais a dilaceração dos familiares devastadas com tamanha dor.
Não se discute o julgamento sobre a suspensão do pagamento. Processos dependem de provas, teses e argumentos jurídicos. Por melhores que sejam as decisões, jamais haverá uma quantia que possa restaurar o buraco deixado pelo fogo e pela falta de cuidado.
O que se lamenta é que um dos maiores clubes do Brasil não consiga estabelecer parâmetros aceitáveis, por meio de mediação ou conciliação, para permitir que os familiares retomem a vida, com o que sobrou das suas almas.
Ter que conviver com a lembrança do fogo consumindo a juventude, os sonhos, os projetos e os afetos, a cada recurso, petição, audiência, é uma forma de perpetuar a dor e as perdas.
Simbolicamente, um acordo, ainda que aparentemente desigual para as partes, pode ser a esperança para sepultar a dor, permitir que o luto cicatrize as feridas e autorizar que a vida siga adiante, apesar de tudo
Andréa Pachá é juíza. Antes de seguir esse caminho, participou de um grupo de dramaturgia e trabalhou com nomes, tais como: Alcione Araújo, Amir Haddad, Aderbal Freire-Filho e Rubens Correa. É também escritora: além de “Velhos são os outros”, é autora de “A vida não é justa” e “Segredos de Justiça”, que deu origem à série homônima no Fantástico, com Glória Pires.