Penso que o Rio tem uma chance, agora, de mudar o rumo do naufrágio cultural que nos cerca. Para isso, a frase que mais penso neste momento é que a “cidade precisa de paz”, ou, num sotaque mais carioca, de “Paes”.
Uma coisa é dividir ideias, outra é dar uma solução, que acredito estar num trabalho conjunto. É necessário que a ópera, a música de concerto, o balé possam se inserir na cena carioca, de uma vez por todas, e que os espaços tenham, obrigatoriamente, que oferecer todo tipo de acesso à cultura para dar estímulo. Para um Rio que quer reerguer-se, buscar um papel cultural internacionalmente na dança, ópera e música de concerto, é essencial porque são grandes cartões de visita de qualquer metrópole.
Será que não deveríamos explorar mais a possibilidade de espetáculos ao ar livre? E isso vale tanto no campo da ópera, música clássica e dança quanto em outros gêneros.
Lembro quando dirigi óperas no Parque Lage: no “Sonho de uma noite de verão”, eram milhares de pessoas espalhadas pelo gramado, numa celebração de arte; muitos até pularam o muro para ver ópera. Onde está que é uma arte elitista? O que falta é estímulo, acesso a todos os tipos de cultura. Tive a sorte de, desde pequeno, ter sido exposto a todo tipo de arte; com o tempo, fui me apaixonando pelo gênero musical, que tinha mais a ver comigo. A alma escolhe.
O Rio sofre muito de uma visão, por vezes, rasa e superficial de cultura. Cada cidade tem sua personalidade, é verdade, mas acho que não vivemos uma realidade em que podemos desperdiçar oportunidades; elas são sempre raras no universo da cultura e da arte. E há a falta de pensamento unificando cultura e educação.
Oferta cultural no Rio há, porém o apoio ainda é pouco para uma cidade que sempre se orgulhou de ser capital cultural do País! Pela instabilidade das instituições, ficamos ainda mais expostos nesta pandemia.
Veja o mundo da ópera: se compararmos a produção (e a maneira como enfrentam a pandemia) de cidades, como Madrid, Paris ou Nova Iorque, já aí estaríamos quase falando de mundos diferentes. Alguns lugares pararam totalmente e outros seguiram com adaptações.
Antes da pandemia, eu já tinha um contrato para encenar, em 2021, a opereta “A Viúva Alegre” na capital da Estônia. Nada mudou, e tudo caminha. Contudo, nesse meio tempo, outros dois contratos surgiram na Polônia, onde meu “Don Giovanni” retorna ao cartaz pela terceira temporada seguida, e um novo “Cosi fan tutte” estreia logo depois.
Claro, são óperas de Mozart, com menos participação do coro e orquestras menores do que num título do Romantismo. No entanto, o teatro tem trabalhado com espetáculo sem público, vendidos por streaming, às vezes, com adaptações cênicas como coro fora do palco. Londres fez alguns balés e já promete um tradicional “Quebra Nozes” para dezembro. Se houver adaptações, são ideias que mostram como o gênero pode ficar vivo.
É difícil comparar a Europa com a América Latina, especialmente com o Brasil… No Uruguai, espetáculos presenciais já retornaram; já o Teatro Colon, de Buenos Aires, e o Theatro Municipal do Chile, há meses, disponibilizam um rico acervo, em áudio e vídeo. São apenas alguns exemplos, mas provam que é possível quando os equipamentos culturais são instituições sólidas, geridas por quem é do ramo e independentes de poderes passageiros.
No Brasil, a OSESP, a Filarmônica de Minas e a Sala Cecília Meirelles são exemplos de resiliência. Outros focaram suas energias em produzir novos conteúdos, vídeos que dialogassem com ópera e dança, ou até academia de ópera para jovens artistas, investindo no futuro. A pandemia expôs, mais do que nunca, a fragilidade de várias instituições — o que faz com que uns possam fazer tanto e por tantos meses e outros pouquíssimo: são apenas as diferenças de orçamento?
Não entendo a paralisia ou o silêncio em arte: é nesse vazio que o artista deixa de existir.
Foto: Michael Dantas
André Heller-Lopes é carioca, diretor cênico especializado em óperas. Já foi, por duas vezes, diretor artístico do Theatro Municipal do Rio e é professor da Escola de Música da UFRJ. Seu doutorado pelo Kings College de Londres foi o primeiro trabalho dedicado a desvendar o nascimento da ópera nacional no Rio do século XIX, assim como a presença das mulheres na cena lírica da época. Atualmente prepara dois espetáculos para a Polônia e a Estônia, com estreias em 2021.