A Covid trouxe consigo — melhor dizendo, fermentou — outro vírus, o do ódio. Nas redes sociais e plataformas virtuais, vemos um mundo de crimes digitais desde o início da pandemia: homofobia, machismo, racismo, violência contra a mulher e o cyberbullying. Com eles, as causas são o aumento da ansiedade, depressão, percepção de solidão e muitos outros. Um exemplo recente é o da cantora Ludmilla, que desativou as suas contas nas redes na última sexta (18/12), depois de uma nova série de ataques racistas. “São 24 horas por dia de comentários racistas em todas as minhas postagens, mas eu estou tirando print de tudo porque isso é crime e vai pagar um por um. Criminosos escorados no virtual vivem pra ofender o outro”, disse ela no Twitter, antes de apagar o perfi.
“O crescimento da digitalização sempre foi exponencial, mas a pandemia acelerou esse processo com esteroides”, declarou Martin Hilbert, pesquisador alemão da Universidade da Califórnia-Davis, nos EUA, e autor do primeiro estudo que calculou quanta informação existe no mundo. Em suas conclusões, ele diz que os efeitos digitais do coronavírus deveriam preocupar a América Latina, “líder mundial no uso de redes sociais”. No nosso dia a dia, não passam despercebidas: a crueldade, a hostilidade, agressividade por qualquer bobagem, cada vez mais intensas.
Nas redes sociais e Internet, a hostilidade não é novidade. Contudo, o senhor acredita que, na pandemia, o número de haters aumentou?
Existe o quadro de narcisismo que usa a rede social como um espelho; aquele que não concorda é mau e motivo de ódio. Certamente que qualquer restrição da liberdade causa ódio e frustração, então piorou tudo, sim. Piorou mais do que era esperado porque, antes, o País ia mal com as restrições e falta de crítica dos próprios erros do regime vigente; agora enfrentamos os extremos.
Algumas pessoas só entram em redes com estes intuitos: desestabilizar, xingar, agredir, humilhar o outro. Existe já um perfil traçado para essa pessoa na Psiquiatria?
O ódio é sempre imediatista. Sintoniza facilmente com a rede social que atende a esse elemento. O que demora frustra e o que frustra é mau e deve ser destruído. Na verdade, não sabemos de onde aqueles que destilam ódio tiram suas conclusões. Tem aí um não dito que vem da história da pessoa, e está no inconsciente dela. Às vezes, você diz alguma coisa, e quem recebe sente como se você dissesse outra. Isso se chama equívoco e um estopim para a violência nas redes.
Determinados assuntos afloram esse ódio? Existem haters de ocasião?
Sim. Desde que mexa em alguma coisa delas. A história do ódio é tão antiga quanto a humanidade; ela precede a história do amor. Os primeiros relatos bíblicos já descrevem luta fratricida, homicídio, expulsão, exílio, escravidão, preconceitos diversos, fúria incontrolável. A atualidade não foge a esse quadro primitivo; as mesmas coisas continuam acontecendo. Como Freud dizia, a civilização é um verniz. Para o ódio, pouco importa se algo funciona, porque ódio é um estado puro e sem nenhum fundamento além da negação da realidade histórica — o que não deixa de ser uma forma de enlouquecimento. Os sentimentos sempre estiveram aí e afloram por qualquer coisa; agora estão aflorando por causa da pandemia, porque está em evidência. Sempre vai haver um motivo.
Por que parece tão difícil, para determinado tipo de gente, guardar ofensas e agressões pra si mesmas em vez de despejar nas redes?
Essa é uma coisa infantil, como uma criança que vai à janela, xinga os outros ou joga ovos, porque ela está protegida dentro de casa e age sem crítica alguma.
O que esses ataques podem gerar no agredido?
Primeiro, para a pessoa tomar isso como pessoal, ela tem que ter, em seu histórico, alguma memória esquecida de que ela foi repreendida pelos pais – algo assim, porque ofensa é igual a elogio e serve para paralisar o outro. Nada vai acontecer com a pessoa agredida se ela não se identificar com a agressão; ofensa serve para paralisar o próximo. Ninguém tem que se submeter a uma paralisação causada pelo outro. Deve agir no sentido legal mesmo, denunciar, porque a pessoa que agride está pouco se importando com o outro.
Acredita que esses haters têm ideia do mal que podem causar? Existe uma maior procura no seu consultório quanto a esses casos?
Se a pessoa é mais sensível, isso pode causar mal. A procura tem aumentado por causa da depressão, que vem de uma série de restrições que a vida está impondo, e não necessariamente por ataques nas redes. Se você pegar a história de Homero, a “Ilíada” e a “Odisseia”, quando Ulisses sai para o mundo, com toda a liberdade, ele luta, descobre coisas, conversa com pessoas e, no momento em que resolve voltar, 20 anos depois, ele não é reconhecido. A rede social ignora quem a pessoa é. O que tenho mais visto é que a pandemia desencadeou coisas que as pessoas estavam encobrindo. O mais comum são várias formas de depressão – uma ansiedade que já existia por causa da fragilidade do corpo e sempre existiu. Isso é uma das fontes de ansiedade que Freud descreve: o fato de a pessoa não conseguir controlar a fragilidade do corpo e outro fato de ela não conseguir controlar a força da natureza. E o vírus é uma força da natureza descontrolada.
Como ignorar uma ofensa e saber separar?
A gente é ser humano, e essa pessoa que agride não sabe o que é ser humano. Se eu me orgulho de ser um humano, não vou me identificar com uma pessoa que está agindo de forma desumana, cruel, sarcástica; não vou ceder um dedo a isso. E a pessoa nem precisa ser muito centrada para separar. Mas, claro, se a pessoa estiver passando por problemas e estiver em desequilíbrio, pode afetar. O meu papel é tentar ajudar as pessoas a se centrarem.
Então, em resumo, seria aquela expressão usada nas redes “ou surta, ou atura” com os haters?
Cito aqui uma síntese do artigo do psicanalista Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979), “como tornar proveitoso um mau negócio, que é o relacionamento humano?” Se a pessoa conseguir fazer essa pergunta a si própria, tem uma terceira opção. Uma é aturar, a outra é explodir, a terceira é como transformar uma situação adversa numa situação que seja vantajosa.
Existe uma negação das pessoas com o vírus?
O medo da morte é constante e, às vezes, esse medo é tão grande, que a pessoa resolve desistir da vida; então é melhor morrer. É o que Freud chamou de “pulsão de morte”. E qualquer forma de enlouquecimento segue essa pulsão, que é ir em direção à autodestruição.