Cheguei a Londres, desta vez, no dia 23 de janeiro, ou seja, há 11 meses. Nunca fiquei tanto tempo seguido nesta cidade e, paradoxalmente, visitei tão poucos lugares. Claro, dois meses depois da minha chegada, no dia 23 de março, quando eu finalmente tinha resolvido questões práticas para me estabelecer aqui, entramos no primeiro lockdown.
O que deixei de conhecer ou visitar nesse período foi vastamente compensado pela observação do comportamento das pessoas na adversidade. Londres é um imenso caldeirão, misturando diversas culturas e nacionalidades. Nas minhas mudanças, até me assentar, definitivamente, na zona oeste da cidade, passei alguns meses no extremo da leste, onde me sentia em algum lugar próximo ao Paquistão. Ainda assim, com línguas e comportamentos diversos, as pessoas, nesta grande metrópole, de alguma forma, adaptam-se ao “espírito de corpo” local. O que eu quero dizer com isso é que a resiliência e gentileza dos ingleses, ou ao menos dos londrinos, é que dão o tom que prevalece nessa circunscrição.
Sobre essa gentileza, eu diria que poderia ser a exteriorização de uma disciplina interna. Por exemplo: um repórter faz uma pergunta dura ao primeiro-ministro e, antes de responder, ele agradece pela pergunta. Alguém manda um e-mail com notícias desagradáveis, e a pessoa que recebeu agradece ao remetente pelo e-mail antes de responder. Tudo tem um lustro, meias-palavras, uma preocupação em não parecer rude. Quando nosso tutor no mestrado em roteiro explicou que, quando um produtor inglês disser que você deveria reavaliar alguns pontos no início do seu roteiro, ele queria dizer-lhe que desconsiderasse tudo e escrevesse novamente. Entendi que a maior dificuldade aqui não é dominar o idioma, mas sim decifrar as entrelinhas.
A imprensa cai de pau em cima das decisões do primeiro-ministro Boris Johnson, as pessoas reclamam, a infecção e as mortes aumentam, mas eu nunca vi aqui uma fotografia de covas sendo abertas, caminhões levando caixões, nenhum desses exemplos chocantes. Ao contrário, às quintas-feiras, havia 1 minuto para aplaudir e bater panelas em agradecimento ao pessoal da saúde, especialmente do NHS, o SUS daqui, homenageado, nas janelas e portas de várias casas, com um arco-íris como seu símbolo. A história é a mesma, mas a narrativa é outra, edulcorada, disciplinada, resiliente. Espero que ninguém caia de pau em cima de mim, mas não resisto à comparação tão verdadeira: sabe enterro nas classes sociais altas? Ninguém se joga em cima do caixão para impedir que ele seja fechado, não grita, não desmaia, nem esperneia. A dor é contida, domesticada, para ficar dentro dos limites socialmente aceitáveis; já, em outras classes sociais, a dor e a tristeza são expressas em toda a sua potência. Essa imagem me remete às diferenças comportamentais entre brasileiros e ingleses, exponenciadas nesta pandemia.
É claro que todo mundo está cansado. Claro que as pessoas mais jovens não estão tão preocupadas como as mais velhas, cujo risco de consequências nefastas é muito maior. Contudo, Londres resistiu a bombardeios, toques de recolher, desabastecimento (este, previsto para breve, com a vigência do Brexit para as próximas semanas), e está aqui, firme e sólida como a própria Rainha Elizabeth II.
Às vésperas do Natal, Londres parece uma cidade-fantasma, com um ou outro ônibus passando solitariamente pelas ruas vazias do Centro. As vitrines foram lindamente decoradas, os anjinhos iluminados da Regent Street estão todos lá, voando, mas mesmo quem passa para vê-los não vai ter em volta a euforia das compras. E vamos combinar: não faria mesmo o menor sentido, né? Natal é um sentimento de fraternidade, não de consumo desenfreado. Acho que faz muito sentido nos recolhermos e pensarmos a esse respeito.
Ticiana Azevedo já atuou como jornalista e empresária de Comunicação e Marketing, áreas em que tem formação de nível superior. Escritora e roteirista, atualmente faz mestrado em Roteiro na MetFilm School de Londres, com a bolsa “Voices that Matter — women in the screen industries”, em parceria com a MTV Staying Alive Foundation, com o propósito de dar voz às mulheres na indústria cinematográfica.