“A vaca mansa dá leite sempre /a braba dá quando quer…” (Ariano Suassuna, autor do “Auto da Compadecida”, recitado pelo personagem João Grilo para invocar Deus).
A frase exclamativa “Valha-me Deus!” foi farta e belamente proferida por quase todos os personagens de Ariano Suassuna quando em desespero ou precisão de apelar ao Divino.
De fato, o “Valha-me Deus!” foi recomendado pelo mitológico Padim Ciço de Juazeiro aos seus devotos quando fossem invocar a Divindade. Seria a síntese mais adequada para substituir orações mais longas, difíceis de os sertanejos analfabetos, os romeiros, tanto decorarem quanto se concentrarem na fixação mais profunda dos seus significados de fé e de sacrifício, quando chegavam aos pés do hoje quase Santo Padre Cícero, ao final de penosa peregrinação, destroçados pelo cansaço.
Aproprio-me hoje da exclamação mais repetida pelo brasileiro quando invoca Deus, a fim de ajudar o Brasil e seus dirigentes a trilhar caminhos estribados no que recomendam o bom-senso, as razões econômicas e éticas de seus atos e a fidelidade aos votantes que os elegeram.
Comecemos pela pandemia, que nos impõe tantos sofrimentos.
1- “Valha-nos Deus” pelas unidades federativas que aumentam seus óbitos e seus infectados, em especial, o nosso Rio de Janeiro. Mesmo sendo cidade dionisíaca e de tanto culto à celebração do corpo, são desoladoras (e também intimidadoras) essas estatísticas e mortes aumentarem a cada semana, por conta de qualquer liberação dos itens de protocolo para abertura do confinamento. O Rio, “cidade maravilhosa de encantos mil” e “Cidade Mulher” (como Noel Rosa a batizou), sempre cultuou a rebeldia de costumes e a liberação comportamental. Mas “Valha-nos Deus” para fazer desaquecer o fogo dos jovens em hora tão decisiva quanto esta, em que está em jogo a extinção da peste mais devastadora dos últimos 100 anos.
E nunca será demais rogar ao prefeito Crivella cargas duplas de bom-senso ao refletir sobre o temperamento carioca, e liberar menos do que mais — em todos os níveis, inclusive salas de aula.
No fim de semana, rodei pela orla do Flamengo e Urca, do Leblon à Barra. Comprovei o temor de que fui tomado, vendo-me a mim mesmo como vítima futura pelas liberações de multidões grudadas umas às outras em plena areia, sem máscaras, tampouco obedecendo ao essencial, o afastamento presencial.
Se fosse um país, o Rio estaria no 13º lugar no ranking mundial de mortes. Meu bom Deus, valei-nos de tamanhas inconsequências coletivas!
Sigo, de imediato, contrapondo corpos contaminados a mentes e culturas também contaminadas. Quem, como eu, ostentou a vida inteira um livro às mãos e sempre exclamou que um país se faz com homens livres e livros (cito Monteiro Lobato), não pode deixar-se calar com o imposto de míseros 20% que o governo quer impor ao livro. Meu Deus, valei-nos desse desterro a provocar a doença da incultura + desconhecimento + insensibilidade a um país de que sempre se apregoou ler pouquíssimo. E vender livros menos ainda.
A situação torna-se mais vergonhosa ao sermos confrontados por vizinhos, como Argentina, Uruguai, Colômbia e, pasmem, até a paupérrima Venezuela. Todos leem mais que o Brasil… E compram livros.
Agrego a esse apelo para o livro uma urgente regulamentação da Lei Aldir Blanc, que mitigará o jejum imposto à cultura ao longo do ano.
Outro “Valha-nos Deus” há de ser gritado ao ainda ministro do Meio Ambiente, cuja gestão virou a referência mais detestada do governo, quando, há dias, tentou suspender operações de combate ao desmatamento e queimadas, alegando esquálidas questões burocráticas. Estarreceu o mundo, mas, de pronto, foi corrigido pelo Vice-Presidente Mourão, que apagou a tempo o incêndio já a arder nos jornais internacionais em cobranças ácidas ao Brasil.
Para que tamanho desgaste? Parece provocação — e é, como diz o Ancelmo.
Grito daqui, agora, vigoroso “Valha-nos Deus” contra o “complô da decepção” que se arma sibilinamente contra a Operação Lava- Jato, uma traição à bandeira contra a corrupção, apregoada pelo candidato Bolsonaro em campanha.
Mas o que é isso, meu bom Deus? Não é crível que o Procurador-Geral Aras possa acobertar, debaixo de sua asa, tamanho desgosto nacional. E não pensem ele e outros ministros, até do STF, além de representantes do Congresso, que o País não sabe o que está por trás de tamanho disparate (termo piedoso para não imprecar robustos palavrões, até porque não os emprego, embor, neste item indecoroso, a vontade lateje…).
Agora mesmo, nas operações dos diligentes procuradores desta semana, serão milhares de dólares que voltam a seu dono. Que dono mesmo? O país, cara pálida, que jamais testemunhara tamanhos benefícios vindos de um único órgão público. Como diz o ditado, “é só seguir o dinheiro para descobrir os ladrões”.
Valha-nos Deus misericordioso! Ilumine Aras a prorrogar a Lava-Jato, com severo puxão de orelhas a lhe ser aplicado pelo Presidente, por conta de ações temerárias deste Procurador-Geral que não se dispõe a defender a sociedade (como determina a lei), senão apenas ao Presidente que o nomeou.
Um último “Valha-nos Deus” é triplamente destinado, embora cheio de dúvidas morais. Dirijo-o ao Presidente a quem sugiro: 1- Não despreze o ministro da Economia, um “Posto Ipiranga” agora esvaziado pela ala temerária de ministros gastadores que querem estuprar o teto fiscal, indispensável para estabelecer normas saudáveis ao futuro quase imediato da nação nestes tempos de gastanças jamais vistas, provocadas pela peste que derrubou nossa economia.
As dúvidas morais que minha consciência alimenta serão as de não contemplar os mais pobres de imediato, com planos do já candidato à reeleição para proteger os miseráveis, redistribuindo os bens nacionais, a fim de lhes aliviar a atordoante miséria pós-pandemia.
Vejo agora a dicotomia que alimenta meu espírito: serão essas “bondades” apenas imaginadas para integrar um jogo eleitoral de Bolsonaro, candidato a conquistar o eleitorado nordestino, cativo de Lula-Dilma? E daí? Há de se tolerar por conta dos mais necessitados.
Confronto minha consciência, que comanda a mitigação da pobreza crônica (agora dramaticamente ampliada), com gastanças de alto risco, mas inapelavelmente justas e até necessárias.
Por analogia, evoco os mesmos insensíveis que fazem cara de paisagem e se dizem contra a Lava-Jato por insignificâncias, miudezas, ou bobagenzinhas reles, sustentadas apenas pela má-fé, ou, quando não, alimentadas por vis interesses pessoais — de ficar longe das grades.
Pobres crianças, filhos diletos de Deus, Nosso Senhor…
Ricardo Cravo Albin é jornalista, historiador, pesquisador musical e criador do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, que tem mais de sete mil verbetes e referência na área musical.