“Mãe, como o Pantera Negra pôde morrer? Ele é invencível”. Essa foi a pergunta do meu filho de 7 anos ao saber da morte do príncipe de Wakanda. Para nós, vai-se o ator; para as crianças, o herói. Como responder a essa pergunta sem tirar a esperança de tempos melhores? Bem sabemos que nossos heróis e heroínas, quando temos 7 anos, são mais que representações — são crenças, sonhos e projeções de superação dos nossos temores mais tímidos. Vestir a fantasia do rei de Wakanda, para qualquer guri espalhado por este mundo afora, é acreditar nas habilidades daquelas garras e na possibilidade de ser um menino sem medos.
Num mundo Brasil em que balas achadas atravessam corpos jovens negros a cada 23 minutos, não há nada mais desejável do que o virtuosismo da pantera indomável — para eles e para nós (mães, amigas, tias, primas, avós, madrinhas, sobrinhas, parceiras, esposas). Quando um homem negro se torna estatística, chora, sofre e se ultraja uma população inteira. Somos mais da metade dessa sociedade.
O jovem ator Chedwick Boseman morreu no dia 28 de agosto, aos 43 anos, vítima de câncer de intestino. Ele não foi estatística, ele foi meta. Protagonista do filme sobre um herói nascido em um reino africano, o ator que deu vida ao príncipe-rei de Wakanda conquistou corações no mundo inteiro.
Chedwick, certa vez, relatou sua recusa a interpretar um personagem cuja história foi construída sob uma ótica extremamente estereotipada. Recusou o papel por entender o quanto aquela estereotipização e a superficialidade daquele enredo em nada serviriam para o fortalecimento da população negra; afinal, arte também é reflexão. Subjetividade é/pode ser instrumento de mudança. A arte nos possibilita questionar o inquestionável. Radicalizar as plataformas de reivindicação.
Para nós, negros, a arte, como nos diz Sueli Carneiro, “é o locus da resistência negra mais persistente desde a escravidão”. Boseman construiu sua trajetória artística baseando-se na lógica da mudança. Entendeu o seu papel como cidadão através de seu ofício. Foi um ator dedicado a mudar um imaginário construído e chancelado pelas teorias eugenistas de inferiorização de corpos negros.
Foi um agente destinado a estremecer o racismo estrutural que assola todas as camadas da sociedade, inclusive a do cinema. Importante lembrar que “Pantera Negra” foi o primeiro filme da Marvel dedicado a um herói negro como protagonista. Chadwick escancara para o mundo o quanto a profissão do artista, essa profissão tão abandonada e esquecida pelas nossas entidades públicas, deve ser reconhecida pela seriedade que possui.
A arte é o espelho da vida. E a vida é profunda demais para ser encarada tão rasamente.
Conhecido e respeitado no mundo inteiro por sua atuação no filme “Pantera Negra”, o ator também emprestou o seu corpo a outros importantes personagens na história do enfrentamento ao racismo americano. Podemos citar Thurgood Marshall, primeiro juiz negro da Corte Suprema Americana, em “Marshall — Igualdade e Justiça”, a realidade de soldados negros norte-americanos em “Destacamento Blood”, de Spike Lee e a lenda do beisebol americano, primeiro homem negro a compor o time da liga principal de beisebol, o jogador Jackie Robinson, em “1942 — A história de uma lenda”.
Chadwick Boseman parte para o orun (mundo espiritual) no mesmo dia em que, atipicamente, foi celebrado o Jackie Day, comemoração anual para se lembrar a data em que o jogador da camisa 42, interpretado por Chadwick em “1942 — A história de uma lenda”, faz sua estreia na liga principal. Sua dedicação e representatividade serão sempre lembrados por nós, reis e rainhas de Wakanda. “Pantera Negra” não é só um filme, é um marco no imaginário de princesas e príncipes do cotidiano. É a lembrança dos Silva, dos Santos, dos Sacramentos, de que temos nome e sobrenome, de que pertencemos a um reino, e nossa história não é só de dor e tristeza, mas também de muito amor, força e legado. Somos Wakanda. Somos África.
Obrigada, Chedwick. Fica em axé.
“Na minha cultura, a morte não é o fim. É mais um ponto de partida”. (Fala do filme “O Pantera Negra”)
Sol Miranda é atriz, produtora e pesquisadora. Coidealizadora do Grupo Emú e da Segunda Black (Prêmio Shell) e também coordenadora do Negrahr (Núcleo de Estudos Geracionais sobre Raça, Artes, História e Religião) da UFRJ.