Os irmãos Carlos e Felipe Prazeres, 45 e 43 anos, praticamente nasceram, engatinharam e aprenderam a andar entre os acordes de Beethoven, Mozart e Tchaikovsky, nos ensaios da orquestra fundada pelo pai, Armando Prazeres (a Pró-Música, em 1972, que ganhou o nome de Orquestra Petrobras Sinfônica a partir de 1987). Pensa que os meninos eram obrigados? Não, eles amavam. Aos 6, 7 anos, já tinham aulas de piano, mas sem a mínima seriedade, até descobrirem seus interesses reais: o primeiro, o oboé; o segundo, o violino. No entanto, ambos se encontraram mesmo foi na regência, paixão do pai.
Entraram na Petrobras Sinfônica no fim da adolescência e, mesmo sob os olhares de “ah, mas são filhos do maestro!”, conquistaram respeito dos músicos e reconhecimento de todos. Assim como o pai, tanto Felipe quanto Carlos são defensores da popularização da música chamada erudita, termo que Felipe desaprova, preferindo “música de concerto”, para quebrar a barreira com o público e desmistificar a ideia de que toda orquestra é careta, proposta totalmente oposta à da Petrobras Sinfônica. Tanto que também entraram no mundo das lives — gravaram um vídeo divertidíssimo de “Viva la vida”, do Coldplay, imitando os memes da quarentena. Fizeram festival online e se apresentaram em drive-in, na Cidade das Artes, na Barra, no último dia 28 de julho. E, na próxima quarta (05/08), fazem a última live do projeto “Encontros Petrobras Sinfônica”, às 11h, em homenagem a Armando (1934-1999), pouco antes do Dia dos Pais (09/08).
Felipe garante uma conversa emocionada, mas, além de tudo, com muita história divertida, aliviando as lembranças nada boas — em janeiro de 1999, Armando foi sequestrado por três bandidos na porta de um colégio em Laranjeiras, quando buscava um dos filhos, e encontrado morto no subúrbio carioca. À época, Carlos era estudante na Filarmônica de Berlim, e Felipe estava em Curitiba, para um concerto.
Como vai ser o encontro e qual a carga emocional de falar do seu pai?
É o fim de uma série de encontros que foi um sucesso desde o primeiro (10/06). Mas é sempre uma surpresa porque certamente vamos nos emocionar. Quando começo a falar do meu pai, não tem jeito, e, sempre que agradeço à orquestra, vem toda uma história por trás. Falar, ao lado do meu irmão, sobre o maestro Armando Prazeres, tudo o que ele significou para nós, é muita coisa. O Kiko (Carlos) chegou a comentar com meu pai sobre as aspirações em reger, mas, quando ele foi assassinado, o Kiko estava na Alemanha e eu, em Curitiba; ia fazer um solo num concerto, queria tocar, mas não me deixaram. Tive que voltar pra casa e ficar com a minha família. Não estávamos aqui, e isso mexe muito com a gente, tem muita coisa que não foi dita. Na época, eu era o único que morava com meu pai. Nenhum outro filho (são outros quatro irmãos, de casamentos diferentes) teve essa convivência. Vamos contar histórias muito engraçadas, até para dar uma leveza porque ele tinha esse lado: era um gozador.
Qual a primeira coisa que vem à sua cabeça quando pensa no seu pai?
O carisma, e estar presente mesmo sem estar. Ele trabalhava muito, regia uma porrada de corais, orquestras etc., mas, quando estava junto, era completo. Ele tinha que dar conta de tudo e todos ao mesmo tempo, e fazia isso também através da música. Acho que eu e Carlos assistimos a 90% de todos os ensaios que a Petrobras fez desde 1987. Tínhamos aula de piano aos 6, 7 anos, mas era uma falta de talento absurda. Não dávamos muito valor àquilo porque já estávamos inseridos dentro da orquestra e, apesar de o piano ser fundamental, ele não pertence a uma orquestra na maioria do repertório. Em algum momento, eu disse que queria estudar violino, e ainda bem que meu irmão escolheu o oboé, porque ele é um absurdo, uma referência nacional e internacional para mim. E a vida de violinista demora a dar resultado. Violino é desafiado, e sou completamente apaixonado pela regência.
Seu pai aprovaria as últimas apresentações, digamos, mais roqueiras?
Meu pai era, por essência, um maestro de coro e, logo depois, foi para orquestra. Ele regeu “Roda-Viva”, de Chico Buarque, fazia shows em lugares públicos… Isso vem de família (rs rs rs). Agora, não sei se ele curtiria muito a gente fazendo Coldplay, Queen, Metallica. Mas ele era uma pessoa aberta, e a orquestra foi fundada com este intuito: o de levar música às pessoas que não têm acesso; então, independentemente do gênero, estamos aí, expandindo. Acredito que ele ficaria surpreso com a proporção da orquestra como instituição, que ficou ainda maior com a pandemia, as lives, festivais, enfim a migração para a Internet. Além de termos o Isaac (Karabtchevsky), o cara da música, o maestro vivo mais importante do Brasil, um mito, está ali, assinando os concertos.
Existiu resistência dos músicos?
Alguns colegas do meio falaram, mas, na orquestra, todo mundo comprou o barulho porque via o resultado. É claro, a gente fazia isso, mas, na semana seguinte, estava tocando Beethoven. Temos em mente trazer pessoas que nunca assistiram a um concerto, que seja meia dúzia, já está valendo. Uma orquestra tem que pertencer à sociedade e tocar de tudo, música de concerto ao rock, pop, sertanejo, e vamos tentar fazer isso da melhor forma.
E sua impressão com as lives? E o drive-in?
A gente demorou um pouco para começar porque tinham até as piadas né? Como a da pessoa com medo de abrir a geladeira e ver três lives ali. Então decidimos chamar de “encontro”, convidar quem também faz coisas parecidas, mas não são músicos. E começou assim, com o violista Fernando Thebaldi e Chaps Melo, criador do Mundo Bita, que foi um sucesso; logo depois, veio Paulinho Moska, Ana Botafogo, Lucy Alves… Eu fiz uma com Mateus Solano, que é um grande amigo, foi meu aluno de violinha e tem um conhecimento bacana de música clássica, o que é legal para o público ver um cara de outra área interessado em tantos assuntos, para sair da bolha, diversificar. No drive-in (28/07), a princípio, estranhamos a ideia de tocar para um monte de gente nos seus carros. Ficamos preocupados com a sensação do público e pensei: não vou pedir que as pessoas buzinem; estranho isso. Aí chega o dia, estamos no palco, teatro vazio, sabendo que tem um monte de carro lá fora. Realizei que precisaríamos ouvir as buzinas, ainda mais tocando Queen, que é um show em que as pessoas enlouquecem e cantam junto. Pedi que colocassem uma caixinha de som baixinha na sala, e foi muito engraçado porque a gente acabava uma música, começava o buzinaço. É uma experiência para o resto da vida; jamais vamos esquecer.
Ficaram reticentes em “aglomerar”?
Parecia que estávamos no Japão, na Alemanha. Fizemos todos os protocolos possíveis para produzir o festival; todo mundo foi testado. E os mais de 60 anos foram poupados, a começar pelo Isaac. Felizmente, não tivemos nenhum caso de Covid até agora.
E essa desmistificação de que toda orquestra é careta e sisuda é importante?
Só tem maluco dentro de uma orquestra. O Karabtchevsky sempre fala isso. Uma orquestra é um microcosmos da nossa sociedade: tem o crente, o careta, o doidão, o alcoólatra, tem de tudo. São 65 músicos, mais a produção. Você não está ali só como spalla, mas até como confidente, ouvinte, apaziguador. E sim, é importante para trazer o público, por isso não gosto de falar erudito, porque afasta, parece uma coisa intelectual, distante. Eu falo ao público como se estivesse na calçada de casa, porque a própria orquestra já é cheia de protocolos.
Como é um maestro, digamos, também com talento físico? A fila está grande?
(Rs rs rs) Sim, tem as fãs, mas eu sei lá… Até pela disciplina como violinista, eu tenho que estar bem — não posso estar de ressaca, quebrado, sou pai, não dá. Existe a tentação, ninguém é de ferro, mas se eu fosse um popstar de banda de rock, eu estaria perdido. Rola o assédio, mas é supertranquilo porque há aquela imagem do maestro, da pessoa inalcançável e, por isso, existe um respeito. Porque, bem ou mal, o maestro tem aquela postura, toda uma mise-en-scène.
Você é pai de Nina (3 anos), do casamento com a atriz Carol Castro. Como é a relação com a sua ex e se a pandemia o aproximou da sua filha?
Ela faz 3 anos no dia 12 de agosto, e nasceu um dia antes do Dia dos Pais; por isso, a data é duplamente comemorada. A gente sempre tem que tirar alguma coisa de positivo mesmo nessa coisa horrível que está acontecendo. Eu tenho as orquestras nas costas (também é diretor artístico na Orquestra Johann Sebastian Rio), quase não não parava em casa. Veio a pandemia, e jamais imaginaria que fosse ficar tanto tempo perto da minha filha. A Nina está em primeiríssimo lugar pra nós, ela gosta de os ver juntos. Podemos manter uma relação de amizade, parceria e companheirismo, e ela sabe disso. A Nina sente essa energia; um dia ela vai entender. A Carol já está namorando; apresentou o namorado (Bruno Cabrerizo) pra filha, e tudo bem. Eu não apresentei ainda ninguém porque ainda não me senti à vontade de estar com uma pessoa e dizer ‘filha, essa aqui é a tia tal’. Melhor ficar quieto e deixar assim. Sou exclusivo da Nina… na cabeça dela!