Todo mundo tem um grilo falante, aquele oficibói do superego que aparece para nos assessorar quando não queremos ajuda e depois ressurge para dizer “Não falei? Eu avisei!” na hora em tudo de que precisamos é de consolo.
O meu se chama Boris.
Quarta-feira é seu dia preferido, porque é quando escrevo o artigo do GLOBO. O dediláine é quinta, ali pela hora do almoço, e sempre deixo para escrever na véspera porque neste país em vinte segundos tudo pode mudar, e uma questão palpitante na terça à tarde já é página virada (e enrolando peixe na feira) no dia seguinte.
Enquanto tomo café, leio os jornais, vou aos portais de notícia e dou uma espiada nas anotações que faço o tempo todo — frases soltas, citações, palavras avulsas, coisas ininteligíveis (“É preciso s??? n.h. para ser ético”, “irrealidade ?? / dar sentido à vida”). Boris observa tudo atentamente, de antenas em pé.
— Tenho lido cada vez mais denúncias de racismo. Será que o racismo aumentou ou as pessoas é que não estão se calando mais diante de comportamentos que até pouco tempo atrás eram relevados?
— Você não vai escrever sobre isso, vai, Eduardo? Você é branco, não tem lugar de fala e…
— Eu não sou branco, Boris. Basta uma gota de sangue africano para…
— Mas tem privilégios de branco. O privilégio conta mais que a gota de sangue. Mais que um litro, eu diria.
— Então não posso me manifestar, dizer que as coisas estão mudando e que isso é positivo?
— Pode. Mas só se pedir perdão e assumir que é racista.
— Mas eu não sou racista — tanto que quero escrever sobre os avanços contra o racismo.
— Ra–cis–ta. Todo branco nasce com o pecado original do racismo. E não há água benta que dê jeito. Negar que seja racista é uma forma de perpetuar o racismo. Você não tem o direito de defender o racismo, de criticar o racismo nem de ser indiferente ao racismo. Seu único direito é se penitenciar. Autoflagelação em público, de preferência.
— Ok, Boris. Talvez escreva , então, sobre o fenômeno dos casais que não suportaram a convivência durante a quarentena e acabaram pondo fim a um relacionamento que estaria, mais cedo ou mais tarde, fadado ao fracasso.
— Você não vai romantizar a pandemia, Eduardo! Não vai mesmo!
— Não estou romantizando. Estou dizendo que ela acelerou um processo e…
— … e que isso é algo positivo! Não pode ter nada de positivo numa doença dessas. Não pode dizer que houve menos emissão de gases poluentes. Menos acidentes de trânsito. Que os pais passaram a dar mais valor aos professores. Isso é romantização!
Enquanto Boris vocifera, rascunho algo sobre teledramaturgia. Faço uma paráfrase de Clemenceau aqui, uma de Karl Marx ali, cito Cazuza e Guimarães Rosa, falo de um dramaturgo francês do século 18 e da Nazaré Tedesco, e o texto está pronto. Quer dizer, pronto para dormir (são 10 da noite, a vizinha ainda nem começou a arrastar os móveis).
Vamos pra cama os três, eu, Bóris e o texto. Cada um na sua cama, bem entendido. Na manhã seguinte, acordo mais aberto a ponderações, disposto a podar excessos, lixar arestas, lapidar as frases. O texto, por outro lado, desperta atacado. Fez uma profunda reflexão acerca de si mesmo, concluiu que é melhor inverter a ordem dos parágrafos e cortar dois deles; detectou um cacófato, uma regência suspeita e achou pelo menos três palavras repetidas (valei-me São Sinônimo!).
Boris? Boris teve uma noite de cão, com um pesadelo em que a liberdade de expressão era uma galinha carijó que corria atrás dele num quintal repleto de papiros, pergaminhos e alfarrábios. Ele está exausto dos sonhos intranquilos e afônico de tanto esbravejar na véspera, incapaz de um cri cri.
O artigo sai sem a intervenção dele. Semana que vem ele ataca de novo.