Uma das únicas coisas ininterruptas na pandemia foi a bike. Ainda em março, a Organização Mundial de Saúde (OMS) indicou a prática como uma maneira de manter o distanciamento social, além de totalmente sustentável e alternativo às aglomerações em metrôs, ônibus e trens, com o plus do exercício físico. Também, segundo a Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike), houve um aumento 50% nas vendas de maio, em comparação com o mesmo período do ano passado.
Além disso, o vento no rosto, durante os passeios por um Rio completamente deserto, foi um momento de glória para muita gente. O carioca Raphael Pazos, 45 anos, é empresário de hotelaria, mas tem paixão pelo ciclismo há mais de 20 anos. Conhece tudo ligado à prática na cidade, seja para o esporte, seja para trabalho, seja para lazer. Em 2013, ele fundou, com um grupo de amigos, a Comissão de Segurança do Ciclismo (CSC-RJ) — com a chancela da Federação Estadual de Triathlon e da Federação Estadual de Ciclismo do Rio — para cobrar das autoridades a aplicação das leis de trânsito, educar e conscientizar, já que o Código de Trânsito, escrito há 23 anos, não evoluiu como os novos meios de transporte (patinetes, bicicletas elétricas etc.) e a grande adesão. “A bicicleta deixou de ser um brinquedo há muito tempo e passou a ser um veículo. O cidadão, independentemente de estar se deslocando por carro, bicicleta ou a pé, tem seus direitos e deveres”, diz ele. Hoje, a comissão, presidida pelo advogado e ciclista Miguel Lasavia, tem 150 integrantes/voluntários.
No fim de maio, a União de Ciclistas do Brasil (UCB) lançou a campanha nacional “Bicicleta para futuros possíveis”, a fim de estimular o ciclismo urbano e engrossar o coro de que o meio de transporte deve ser adotado no pós-pandemia. A coluna conversou com Pazos.
Quais foram os efeitos da pandemia no ciclismo do Rio?
Graças a Deus, não houve impeditivo para o esporte, nem para lazer ou para a própria mobilidade urbana e, principalmente para trabalho. A bicicleta gira a economia de uma cidade, de um estado, de um país. Houve aumento exponencial do serviço de delivery, e podemos dizer que a bicicleta salvou muito restaurante e empregou muita gente. As pessoas começaram a comprar mais bicicletas para evitar as aglomerações em ônibus e metrô, sem falar da prática esportiva, que foi um alento no isolamento social.
Quais suas observações da cidade que não via antes da pandemia?
Eu vi muito mais bicicletas nas ruas; a prova disso são as lojas de venda e manutenção. As pessoas estão deixando o carro em casa. Na reabertura do Parque Nacional da Tijuca (09/07), fiquei impressionado com a quantidade de animais na pista: macacos, gaviões…. Um dos motivos de ainda proibirem a entrada dos carros foi esse e a qualidade do ar, com a diminuição da circulação.
A comissão chegou a fazer algum evento na pandemia?
Num primeiro momento, os ciclistas ficaram em pânico porque, no treino de alta performance, podemos chegar a uma velocidade de 50km/h e os riscos de acidentes são grandes; então, o pessoal deu uma parada pra não ocupar um leito de quem realmente estivesse precisando. Mas, depois de um mês, os atletas voltaram a treinar individualmente. Também trabalhamos junto à Prefeitura e conseguimos que fosse incluída a liberação das atividades físicas ao ar livre na primeira fase de flexibilização. E, recentemente, a liberação do Parque Nacional da Tijuca.
Você acredita que o ciclismo tenha ganhado espaço e possa pautar as políticas de transporte no pós-pandemia?
A pandemia serviu para mostrar aos órgãos públicos o que tentamos há anos: qualquer cidade que invista em construção de ciclovias, ciclofaixas ou ciclorrotas está conseguindo reduzir os custos com a saúde pública e com o meio ambiente, porque uma pessoa que pedala está indo contra a obesidade, o tabagismo, está praticando atividades físicas todos os dias, e, bem ou mal, no próprio deslocamento, você já está se exercitando, além de ser um meio totalmente sustentável, sem emissão de poluentes.
O que falta para o Rio adotar de vez?
As formas de mobilidade estão surgindo de uma forma tão rápida que as legislações não acompanham as mudanças. Daqui a pouco, vamos estar com aquele skate flutuante, como no filme “De volta para o futuro”, e não vamos ter uma lei de como usar isso — é o que acontece hoje. Existe uma lei municipal para bicicletas elétricas, estabelecendo que a velocidade máxima é de 20 km/h. Qualquer bicicleta é um veículo de propulsão humana, então, o lugar dela é na via pública, como se fosse um carro, e isso está no Código de Trânsito brasileiro. As ciclovias existem para dar mais segurança porque as pessoas são muito agressivas e externam todos os seus problemas no trânsito. O elo mais frágil é o pedestre. O código foi feito para carro, não para bicicleta. Existe no Rio um decreto de 2019 que instituiu o plano de mobilidade urbana sustentável no município. Isso foi uma grande vitória. Nele, por exemplo, novos prédios são obrigados a ter bicicletário. Com isso, as pessoas têm que mudar a logística; um empregador tem que oferecer um lugar para uma ducha antes do trabalho, porque nosso verão é exorbitante. E que haja manutenção e conservação das ciclovias que já existem (como na Av. Brasil, que não tem nem calçada) e sejam construídas novas. E tem muita gente boa trabalhando para cobrar isso tudo.
A comissão conseguiu alguma coisa desde sua criação?
Conseguimos três alterações no Código de Trânsito: uma que aplica a infração gravíssima — e não grave, como antes — a carros que param na ciclovia; outra também que torna gravíssima a multa se deixar de reduzir o carro para ultrapassar uma bicicleta; e a criação das chamadas Áreas de Proteção ao Ciclismo de Competição — no Rio são três, na Região Portuária, no Flamengo e na Reserva.
É difícil depender dos políticos?
A gente tirou proveito na pandemia para fortalecer, junto ao poder público, a necessidade de investimento em planejamento cicloviário. É fundamental para tudo — esporte, saúde, lazer, turismo, trabalho e mobilidade urbana. A pandemia coincidiu com o ano das eleições municipais; então estamos aproveitando isso ao máximo. Infelizmente existe uma dança das cadeiras muito grande dos secretários — quando começamos a conversar com um, já mudou. Lascou! Tudo de novo… O segredo do sucesso do trabalho voluntário é o tempo. Quando criei a comissão, as pessoas pensavam que eu tinha algum interesse político ou financeiro, mas só quero ajudar. Depois de sete anos de trabalho, conquistamos muita coisa. Não tenho partido político; sou um cidadão, vou lá, peço, e as coisas estão dando certo. Sou fundador da comissão e fui presidente de 2013 a 2018. Cheguei e larguei o abacaxi para o Miguel porque a minha intenção é provar que qualquer um pode fazer.
Qual seu maior objetivo como ciclista?
Que os nossos filhos e netos não sofram tanto no trânsito, como nós. A comissão foi criada por causa da morte do Pedro Nikolay (atropelado por um ônibus em 30 de abril de 2013, na Avenida Vieira Souto, em Ipanema); antes e depois dele, foram muitos. Queremos que todos tenham consciência e educação e saibam da importância da bicicleta, e que o lugar dela é na rua e também na ciclovia e você tem que respeitar.