Manhã de sábado… mas poderia ser de segunda, sexta ou quarta feira. Às vezes, não sei em que dia estamos — parece uma epidêmica falta de memória, sentida cada vez que olho, através da mesma janela, todos os dias. Já não estou mais tão preso como no início, e agora as máscaras são finalmente fantasia. Estão caindo. Não é sonho. Estou vestido de assaltante, tomado de assalto por uma onda que não passa. Ladrão do tempo, de espaço, de sabonetes deixados nas favelas. Novo normal não; somos os mesmos, imagine! Pleiteamos o carnaval ainda ontem; pleiteamos o som da aglomeração, o suor, a pipoca, o agito, o beijo na boca dentro da corda; pleiteamos descer a ladeira. Lá vem ele, de novo — nada de novo.
Daqui a pouco, eu tenho que voar: luvas, não encosto no corrimão das escadas rolantes; apenas subo e deixo rolar. Subo como o voo que fura as nuvens, céu que nasce sereno; surge moreno um suposto Deus.
Suposição para o que permite disparidades. Sobrevoo a nova cidade: sinal aberto, lockdown. Não sou mais eu, “eu percebi”, diz o rapper da Zona Leste. Muros de grafitte, muitos sem sorte, notícias populares, táxis vazios, estátua da declamação, farol, ninguém atravessa. Eu circulo.
Histeria nos barzinhos, boyzinhos virais, chopes trocados. Volto ao privilégio dos assintomáticos egoístas, das estruturas mascaradas. Foram-se as virtuosas, ficaram as virtuais. Pinta de queer, mas votam errado.
Zoom no caráter, avança nos caracteres, pontue e não esqueça os cadáveres, das dores de quem ficou, do susto de quem partiu, do noticiário triste do Brasil.
Google, páginas vermelhas, casas sem telha, louco de cavalo, concreto do Senado de um Niemeyer que vê tudo triste. Que a paz existe, existe.
O mundo é que resiste, enquanto se desfaz.
Rodrigo Pitta é diretor artístico, dramaturgo e compositor. Escreveu a ópera rock “Cazas de Cazuza”, criou e dirigiu “Made in Brazil”, a turnê europeia de Anitta e a instassérie hit “Alta Sociedade Baixa” para IGTV do Instagram, entre shows-espetáculos, livros e videoclipes.