Alguém já ouviu falar em ex-grávida? Ex-filho? Pois é. Também só existe um Nelson Rodrigues: jornalista, frasista, cronista, dramaturgo, dono de um pensamento absolutamente único. Tão único que desvenda, sem perdão e sem qualquer hesitação, os princípios mais abjetos, os desejos mais sórdidos da alma humana. Nelson Rodrigues, ele mesmo principal personagem de sua escrita, pois carregou a tragédia na vida: assassinato do irmão, a filha cega, o filho preso político, amores desencontrados, família secreta.
Esse pernambucano, sem sotaque algum do Nordeste, repleto da prosódia carioca, que aparece na voz de seus personagens pela primeira vez, no Teatro Brasileiro, construiu uma obra em que joga todas as misérias da alma, mas absolutamente todas. Incestos das mais variadas formas, assassinatos, perversões sexuais e pessoais, inveja, ciúme, traição, ódio, muito ódio — tudo em nome do amor. Controverso, pois foi idolatrado e odiado, visto como pornógrafo que não é (peças e peças sem nenhum palavrão ou sexo explícito), ações que se passam sem cenários que se constroem apenas pela palavra e atuação, Nelson é ainda o maior de todos os dramaturgos brasileiros.
“Senhora dos Afogados”, escrita em 1947 e proibida até 1954 , integra o conjunto de peças da primeira fase, na qual as histórias não são as terríveis mazelas do cotidiano da Zona Norte, mas os temas míticos, fundadores da subjetividade. Levemente inspirada na trilogia de Eugene O’Neil, “Mourning Becomes Electra”, aprofunda a contrapartida feminina do complexo de Édipo (o desejo da filha pelo pai). Moema, siderada pelo pai Ismael, afoga as irmãs, induz o pai a matar a mãe, deixa a avó morrer de inanição. Dessa corrente de horrores, Jorge Farjalla extrai um belo espetáculo, denso, intensificando a escuridão nos cenários e figurinos.
Ao introduzir dois personagens, ambos com aparência decadente, para substituir os dois coros (vizinhos e prostitutas), Farjalla reverbera, com acerto, um diálogo exterior dos personagens, que falta no original. E ao fazer de Letícia Birkheuer o personagem do jovem filho Paulo inseguro, reinstaura e evidencia a própria essência rodriguiana, que não é uma questão de gênero, é tudo do humano. A opção pelo caminho da interpretação clássica teatral, com nenhum personagem sobreatuando, faz do elenco formado por Alexia Dechamps, João Vitti, Karen Junqueira, Rafael Vitti, Francisco Vitti, Letícia Birkheuer, Nadia Bambirra, Jaqueline Farias e Du Machado um conjunto equilibrado no qual prevalecem as relações e a força dos diálogos.
É no cenário e direção de arte de José Dias que emerge a proposta que é o principal acerto dessa encenação. O tom da intemporalidade, pois não há qualquer referência a uma época determinada, com o farol/torre se mobilizando, abrindo e fechando, um marco em torno do qual todos giram, a falta de claros, a não ser eventualmente uma luz do farol, nos mostra que os dramas que se encenam e ao mesmo tempo se abafam nas famílias, célula mater de nossa sociedade, são as histórias de cada coração e mente. Faróis negros que, de vez em quando, emitem luz.
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