O “discurso do ódio” não tem lado, não tem partido, não tem religião nem cultura. Ele pode valer-se de tudo e de todos, vir acompanhado das mais diversas justificativas e titulações, mas é sempre destrutivo para a mente humana.
Como psicanalista, penso que jamais devo silenciar sobre o cortejo de danos causados pelo ódio, os quais ameaçam as condições do autêntico debate crítico que conduz à saúde mental e institucional. Não preciso aqui acrescentar democrático como adjetivo, pois a democracia já é crítica por si mesma. Penso que é hipocrisia quem opera em seu nome quando ela não se encontra sem salvaguardas.
A panfletagem das redes sociais incita o ódio, desvirtuando seu objetivo de trocas afetivas entre as pessoas. Da mesma forma, atuam as mídias tidas como oficiais, quando subscrevem militâncias tolas de seus operadores. Também os poderes que excedem em seu papel estão a serviço do ódio e do desvirtuamento do pensar. São facetas do autoritarismo e da megalomania.
Como psicanalista, meu universo é limitado, mas sempre me cabe denunciar e propor que se resgate o pensamento, uma vez que, no ódio, não existe o pensar, mas somente a crítica depreciativa e cega tentando se passar por pensamento.
Recentemente, fiquei estarrecido ao ouvir a fala de ódio de um cidadão que se intitula historiador, filósofo e cronista político. Vou mencioná-lo como exemplo flagrante de distorção e manipulação de conceitos movida por ódio. Na sua fala, ele chegava a salivar de ódio. O cuspe estampado em seus lábios deixava entrever esse misto de euforia, megalomania e ódio, que estão sempre interligados.
O historiador falava, entre outras coisas, em uma necessidade de “desbolsonarização” do País, comparando com o que se passou na Alemanha no imediato pós-guerra, que foi o processo de “desnazificação” daquele país. Como esse processo foi conduzido pelo filósofo e psicanalista Roger Money-Kyrle, cuja obra estudo sempre, e que conheci pessoalmente, percebi como o historiador “viu o galo cantar”, mas sua ignorância não sabe onde.
Esse projeto consistia em escolher, na nova realidade do pós-guerra, pessoas que pudessem ocupar cargos públicos. Como toda população esteve comprometida com o Nazismo, a escolha teria que se basear num critério. Era muito difícil encontrar um não nazista: como saber que não estavam mentindo sobre seu passado? Foi então criado um teste para diferenciar personalidades autoritárias das não autoritárias. A ideia era que o autoritarismo, por impedir o pensar, consistia em uma das fontes geradoras principais do Nazismo.
O teste consistia em reunir, numa sala de projeção, postulantes a um determinado cargo, e eram então exibidos filmes das atrocidades dos campos de concentração. As reações observadas foram de três tipos: havia os que assistiam impassíveis, sem emoções demonstráveis; os que se retiravam, protestando, alegando mentiras; e os que choravam e se sentiam mal com o “revelado”. Deste último grupo, foram escolhidos os postulantes.
Na concepção do autor do teste, eles eram capazes de atingir uma posição depressiva, conceito da psicanalista Melanie Klein, de quem era discípulo.
Podemos traduzir um aspecto desse conceito por uma passagem de São Tomás de Aquino, quando ele diz que nenhum ser é tão finito que não possua nada de infinito, ou seja, não existe quem não possa enxergar seus erros e tentar abrir-se para uma reparação. O escritor Primo Levi fala disso no livro “A trégua”, quando, após ser liberado do campo de concentração de Auschwitz, parou na estação de Frankfurt e viu ex-soldados nazistas ajoelharem-se diante da visão do número de prisioneiros tatuado em seu braço. Aí, a “desnazificação” foi espontânea pela revelação com provas do Mal, o que tornava o teste, de certa forma, equivocado.
No fundo, tratava-se de reconhecer que a desfiguração causada pelo Nazismo não foi um acaso nem se tratou de um processo que poderia ter sido sustado. Foi a violência do esquecimento do Ser e da Verdade, ou seja, foi a negação autoritária das diferenças e o brutal equívoco de esquecer que o não pensado constitui o mais alto legado que nos pode oferecer um pensamento; ou seja, não esquecer que não sabemos e que socraticamente devemos admitir o nosso não saber, sob pena de nos tornarmos mais nazistas que os próprios, como é a fala do tal “historiador” que esquece a veracidade.