Quando Anitta deu início a uma série de lives para discorrer sobre política, o mundo das artes virou pelo avesso. Alguns questionavam a legitimidade de uma artista sem histórico de ativismo político para debater questões que afligem o Brasil, neste período de pandemia. A maioria, no entanto, aplaudiu a ousadia da estrela do pop-funk em externar sua ignorância em longos papos com parlamentares, como Alessandro Molon (PSB-RJ). Anitta é malandra. Ganha dinheiro com a crise em lives produzidas e repletas de patrocinadores, mas, simultaneamente, tem a coragem de falar da instabilidade das instituições brasileiras para uma juventude que hoje já não canta “Pra não dizer que não falei das flores”. Aliena de um lado, “balançando a bunda”, como gosta de ressaltar, e propõe engajamento do outro, fazendo a pós-adolescente perdida no mundo globalizado das fake news. É jogada de mestre.
As lives, que se propagam e já sinalizam um novo nicho de mercado pós-Covid, surgiram para entreter e dar fôlego financeiro a artistas, cujas agendas minguaram pelos cancelamentos de shows. De fato, a Cultura é um dos setores mais prejudicados pela pandemia. Ninguém, em sã consciência, pode ser contra o entretenimento virtual. Ninguém propõe que os artistas padeçam embora as declarações de Zezé Di Camargo sobre o desmantelamento da carreira por causa da suspensão de 50 apresentações sugiram um deboche contra os brasileiros. Se Zezé, que possui um patrimônio estimado em cerca de R$ 60 milhões, ficará pobre, o que dizer dos que se encontram dia e noite na fila da Caixa para receber os R$ 600 de auxílio emergencial?
As lives dos cantores sertanejos e dos artistas pop atraem cervejarias, redes de lojas de departamento, empresas de cosméticos, de material de higiene e de limpeza. Tem mais espaço para logomarcas na tela do que para o próprio artista, que precisa ficar enquadrado, com movimentos limitados, entre o QR Code das doações e as logos dos patrocinadores. A maior parte dessa turma está preocupada com a própria sobrevivência; muitos nunca subiram num palanque, para defender ideais político-partidários.
Quando o fizeram, ganhavam cachês na era dos showmícios. O próprio PT, aliás, pagou à empresa de Zezé Di Camargo e Luciano a bagatela de R$ 1,27 milhão em 2002, para 11 comícios durante a campanha do Lula, naquele ano. O episódio estampou página da Folha de São Paulo, em reportagem assinada por Marcelo Rubens Paiva. Zezé hoje é Bolsonaro; na última semana, saiu em defesa do presidente, garantindo que votaria nele de novo.
As lives, muito objetivamente, só evidenciam a disputa de narrativas e as desigualdades que também acometem o campo simbólico da Cultura. Inicialmente individualizadas, agora já apresentam artistas com bandas, após os questionamentos sobre como músicos, técnicos de som e iluminação, roadies, maquiadores, cabeleireiros, figurinistas e produtores estão sobrevivendo em meio ao atual estado de calamidade pública.
Artistas preconizam o #fiquememcasa, mas será que pagam devidamente aos profissionais de suas respectivas equipes? É só apurarmos. Há lives para os fãs de literatura, há lives para os fãs do teatro e da dança, há lives acadêmicas, há lives religiosas. No entanto, nenhuma live movimenta mais gente do que as de música. São elas que conquistam o grande público e chamam a atenção das marcas. E, como do ponto de histórico, o teatro e a música sempre caminharam lado a lado nos movimentos políticos que sacudiram o Brasil, é desalentador testemunhar a total falta de engajamento dos artistas neste momento em que a liberdade de expressão desaba, sinalizando o rugir da democracia.
Você pode divulgar a Brahma, a Skol e a Original, usar roupas da Riachuelo, publicizar frigideiras das Lojas Americanas, como fez Cláudia Leitte, falar da Parmalat, das fraldas Pampers e do que mais lhe convier para engordar o saldo bancário com que pagará as contas, mas é imperdoável o silêncio ensurdecedor de um time de artistas que protagoniza lives e não é solidário sequer com aqueles que, dos bastidores, movimentam a engrenagem do setor. Mais uma vez, Fernanda Montenegro, 90 anos, repito, 90 anos, foi a única da constelação da cultura brasileira a fazer pronunciamento e apelo público aos deputados federais, pedindo parecer favorável à Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, aprovada no Congresso no último dia 26 de maio.
Não adianta fazer live somente para conquistar likes e pedir donativos via QR Code. Pobre quer não só cesta básica, mas também dignidade social, moral, política. Há que ter, portanto, comprometimento com a coletividade e com o País. O Brasil não é e não será mais o mesmo. Não há espaço mais para a omissão em um país que vem sendo triturado pela antidemocracia; até a Anitta já entendeu isso.
Vagner Fernandes é jornalista, pesquisador e escritor — lançou a biografia “Clara Nunes — Guerreira da Utopia”, pela Editora Ediouro, em 2007, reeditada em 2019 —, e, há mais de 20 anos, cobre reportagens na área de Cultura, além de um apaixonado pelo carnaval e portelense nato.
Foto: Fernando Rabello