Nossos ancestrais mais remotos eram muito frágeis, mas desenvolveram uma forma fantástica de sobreviver num mundo que lhes era extremamente hostil. Os bebês passaram a nascer cada vez mais “inacabados”, ou seja, sua maturação completa passou a ocorrer depois do nascimento. Os paleoantropólogos chamam esse processo de neotenia — significa que a imaturidade dos fetos reduziu a influência dos fatores inatos e aumentou a capacidade de aprender com a experiência.
Entretanto, essa alteração, que passou a ser característica da espécie, colocou os bebês numa condição de não saberem como sobreviver sozinhos. Isso fez com que — ao contrário dos outros mamíferos — demandassem cuidados intensivos por parte do grupo. Ou seja, a simples sobrevivência exigiu uma forte coesão grupal, uma socialização integradora para cuidar do futuro da espécie. O grupo se tornou tão importante que a espécie se mudou da natureza para a sociedade, tornando-se um animal social; um animal político no dizer do filósofo Aristóteles.
O animal político, a princípio sempre pronto a aprender graças aos grupos, pôde-se adaptar a todos os locais do Planeta, e a transmissão de comportamentos e informações tornou-se cada vez mais importante e imprescindível. Para auxiliar nesse processo, outra inovação revolucionária promoveu o fortalecimento dos laços sociais: a criação de uma nova forma de se comunicar, propiciada pela facilidade de emitir sons. A voz converteu-se em um novo suporte de registro, no qual, significado de atitudes e sentimentos pode ser traduzido em palavras: o surgimento da fala, talvez seja o acontecimento mais decisivo da história humana — algo que deveria ser preservado com muito cuidado.
No entanto, passados milhões de anos desses avanços, encontramos alusões ao retrocesso da comunicação nos sarcasmos dirigidos à linguagem dos políticos, exatamente aqueles indivíduos que deveriam cuidar do bem-estar geral dos componentes do grupo.
Não duvido que os políticos digam que não desejam o uso incorreto, abusivo, ou intempestivo das palavras em suas declarações. Contudo fica difícil negar que, além do mais, ainda fazem pior, tentando disfarçar com palavras a confusão de pensamento em que tantas vezes se encontram. Esse é o tipo de retrocesso do processo revolucionário que a linguagem se propôs a fazer pelo ser humano: usar a palavra para esconder, camuflar, mentir.
A importância das palavras na comunicação revela o apreço pelo desenvolvimento humano. Assim, é lamentável quando políticos dão a impressão de que o idioma não tem importância, e não conseguem usar a sua língua materna de forma correta. Todavia, existem políticos professores, além de acadêmicos, que usam a linguagem muito bem para intrigar e mentir. Também são confusos, embora se pareçam com lordes bem-intencionados.
Usando uma analogia talvez inadequada, sugiro que um bêbado sabe dirigir, tem carteira de motorista, mas, apesar disso, vai causar acidente. O mesmo ocorre com o uso inadequado do idioma. Assim, como um bêbado se identifica pela “fala enrolada”, quem se comunica mal ou inapropriadamente pode estar na mesma situação, isto é, vai causar acidentes e corromper, de algum modo, a sociedade para encobrir suas dificuldades para pensar.
Outro fenômeno trágico é o olhar político-ideológico: é sempre um olhar conivente e amoroso, perdoa tudo, fica cego para as maiores insanidades e burrices — que se expressam pela palavra. Entretanto, essa conivência é sempre desastrosa, pois dá origem e apoio à famosa política da necessidade momentânea, que substitui as noções de certo e errado. Um exemplo disso está gritando nos nossos dias de pandemia: não se construíram hospitais porque estádios de futebol eram mais importantes para o momento e para o prestígio político de seus operadores. Existe aqui não só a banalidade do mal como também o vazio mental de seus declarantes e defensores.
A psicanálise lida com processos de comunicação que expressam dificuldades para pensar, derivadas de mecanismos inconscientes. Essas dificuldades se refletem no fato de que uma mudança social é tão difícil de ser realizada e tantos problemas sociais são tão intratáveis. Sem o conhecer a si mesmo pela ótica do inconsciente, o que não sabemos como fazer em grande escala, ainda nos encontramos engatinhando como sociedade.