O cirurgião plástico Carlos Fernando Gomes de Almeida adiou todas as clientes desde meados de março, quando as primeiras notícias sobre a pandemia começaram a surgir no País. Ligou para cada uma com aquela sinceridade habitual: “No dia 12 de março vislumbrei o que ia acontecer em São Paulo e pensei: ‘Isso vai dar cagada’. Liguei para todas e falei: ‘Vocês não trabalham, têm dinheiro para vir a qualquer hora, então fiquem por aí. Desde então, não trabalhei mais”.
Com ele, é assim, língua afiada com destreza e raciocínio rápido, e não só para assuntos médicos. Muitos desconhecem seu lado religioso e espiritual. Foi exatamente essa nuance que aflorou na quarentena e, quase todos os dias, ele tem postado vídeos direto de sua cobertura, na Avenida Atlântica, com mensagens positivas e motivacionais — fala sobre paciência, amor, esperança, disciplina, humildade, amizade, perdão, compaixão, tolerância, preconceito, diferença etc. —, além de contar histórias pessoais como aprendizado.
No ano passado, venceu um linfoma (câncer no sangue) em estágio avançado. Em todos os vídeos, CF desfila uma coleção de camisetas — são mais de 60 — com imagens da sua devoção: Nossa Senhora de Fátima, Santa Rita de Cássia (das causas impossíveis, cujo dia foi comemorado nessa sexta, 22/05), Santo Antônio e São Jorge (de quem é devoto — foi criado um anel em sua homenagem, pelo joalheiro Ricardo Filgueiras, vindo a entrar em linha).
Tem perspectiva de quando volta a trabalhar?
Não temos perspectiva de nada. Quando não sei nada, gosto de falar que eu acho, igual a conversa de vizinha em cima do muro. As cirurgias estéticas devem voltar lá para agosto/setembro. As pessoas pensam assim: já tive, vou operar a mama, não vou pegar de ninguém, você pode me atender? Essa é uma pessoa em mil, porque a maioria vai pensar que os hospitais estão cheios de gente quase morrendo, e a vontade dela pode esperar porque não tem clima. Não é uma pessoa morrendo, é o mundo inteiro. Fico pensando, Covid-19… parece uma coisa atômica. Que porra de nome é esse? Nunca vi doença com número.
Teve medo de pegar a doença?
Não tenho medo de morrer, nem quando tive câncer. Acho que a gente nasce, vive e morre. Porém tenho uma aflição de ter falta de ar porque tive muitos episódios quando fiz quimioterapia. Tenho pavor porque a sensação é de morrer afogado fora d’água.
Como surgiu a ideia dos vídeos?
Foi durante a quarentena. Um dia, eu filmei a praia, falando da beleza daquele dia. As pessoas gostaram e decidi colocar a cara. Minha intenção é zero exibição porque não preciso disso, mas falar das virtudes, emoções do ser humano, nas quais a maioria das pessoas não pensa nunca. Então, já que estão em isolamento social, se eu puder fazer as pessoas pensarem, já está ótimo.
E o retorno?
Começaram a comentar por que eu não postava muito e agora, quase todos os dias, estou lá. Acho que as pessoas gostam de puxar no baú das emoções, de mexer por dentro. Eu penso muito, então são coisas que vêm à minha cabeça. Como não fico pensando só em abobrinha, resolvi expor meus pontos de vista sobre assuntos que mexem com a gente, que são da carne do ser humano, coisas ligadas às virtudes, aos sentimentos.
Não seria um contraste, você um médico mais ligado à beleza, portanto, estética, e um ser tão religioso?
Sou médico e devoto. O ser humano pode ser muita coisa. Não é contraste porque as pessoas têm direito à vaidade. Faz cirurgia plástica quem quer. A coisa exacerbada é que eu não gosto. Quando entra na casa da maluquice, é que é o problema. Sempre fui de fé, ligado à religião, minha mãe é fervorosa. Fui criado assim. Acho que a gente nasce com algumas coisas e no resto somos macacos de imitação. Esses dias assisti a uma live de uma psicanalista, e alguém fez uma pergunta: ‘Como as pessoas lidam com a solidão?’ Ela falou que essa competência de viver a solidão é formada ao longo da vida, da sobrevivência de cada um. Eu sou capaz de morar num iglu no Alasca, sozinho, e continuar uma pessoa amorosíssima. Gosto de ser humano, gosto de conversar, de falar (rsrsrs)… Adoraria ter um programa de rádio, daqueles que o locutor escuta os problemas das pessoas e dá uma de conselheiro.
Não é mais fácil gravar mensagens positivas num cenário tão maravilhoso como seu apartamento?
Por que eu vou fazer trancado num cômodo, se eu tenho a beleza para mostrar às pessoas? Mas uma coisa é certa, você pode ter o cenário mais lindo do mundo, comprar o que quiser, e ser melancólico. Eu não sou. Se eu chegar ao meu prédio, o apartamento pegando fogo, vou xingar, mas vou dizer: ‘Foda-se, ainda bem que eu não estava em casa’. Muita gente pode ter impressão errada de mim, dizendo que eu falo isso mas de uma cobertura de 1.500 metros quadrados de frente para o mar. Vocês querem que eu more onde, para ser feliz? Na favela? Eu moro. Está tudo certo. Só não quero estar no meio do tiroteio. Quero tudo bonitinho. E moro num quarto e sala, feliz da vida, moro em qualquer lugar. Meu corpo é minha casa.
Sua fé aumentou depois do câncer?
Minha visão mudou e minha fé aumentou, porque fui um felizardo. Não sou uma pessoa de conversa fiada. Na minha quarta sessão de quimioterapia, pedi a Nossa Senhora de Fátima um presente, que a médica me dissesse que eu não tinha mais nada. Mas tive a noção que estava pedindo um milagre. Então pedi apenas que a médica me dissesse que eu estava reagindo bem ao tratamento. Quando ela chegou à sala, disse que estava com medo, mas ela respondeu: ‘Aqui, a gente também dá boas notícias. Você não tem mais nada’. Ajoelhei e chorei tanto, tanto, tanto… Nossa Senhora tinha me dado o presente como eu pedi, ela fez um milagre. Eu teria que fazer 12 quimioterapias porque meu estágio estava avançado e achei que não passaria da quarta sessão. Fiz oito. Uma oncologista de São Paulo viu meus exames e falou: ‘Não sou Deus, mas você vai ficar curado’. A primeira coisa que veio à cabeça foi agradecer a Deus. Não sou ignorante, tenho um monte de defeitos e com isso tudo percebi que não temos domínio sobre muita coisa. Isso foi um milagre, uma graça.
E seu ponto de vista?
Deixei de lado muita bobagem, por exemplo, me aborrecer à toa. Não quero saber de picuinha. Lembro de uma história sobre o bem e o mal — tive meu primeiro namorado homem com 20 e poucos, e aí ele virou para mim e disse: ‘Você tem uma preocupação de fazer o bem, de ser bom. Por que isso?l’. Eu respondi: ‘É que sei o quanto posso ser mau’. É isso. Quanto mais você praticar o bem, mais ele vem. A construção de um ser humano é praticar, exercício diário, disciplina. Insiste naquilo, e você será aquilo.
Você sempre foi uma pessoa e um médico muito sincero. Já negou paciente?
Pode perguntar para o meio quem é o cirurgião plástico que mais manda gente embora? Eu. Falo tudo. Se a pessoa pode adiar, pergunto se ela é pobre. Se não, ela volta em dois anos para outra consulta. Vai tratar da pele, faz um laser. Não sou louco de jogar dinheiro fora, mas quando vejo que não precisa, não faço e todas voltam. Eu estou nisso há 32 anos e lembro uma frase que surgiu do nada e, se um dia eu escrever um livro, esse vai ser o título: Com a faca na mão. Porque muitas vezes me sinto como um psicanalista com a faca na mão para cortar o corpo da pessoa para combinar com a cabeça. Tento olhar o ser humano, o interno, porque a intervenção fica bem mais fácil. Muito da cirurgia é feita na consulta. Se você entende quem é a pessoa, dificilmente vai dar errado. Sou humanista. Acho o ser humano um espetáculo.
O bom humor ajuda em todas as situações?
Isso Deus me deu. Não sei se é bom humor ou alegria de viver. Adoro rir de coisas que falei ou que ouvi. Nunca acordei de mau humor. Posso ficar puto, explodo e acabou o assunto. Às vezes acho que sou maluco. Quando tive câncer, falei, caramba, mas câncer dá em gente, não em árvore. Então tem que dar em alguém e foi em mim. Sempre fui muito controlador, ao extremo. Até por isso, tive síndrome do pânico lá atrás, mas agora não quero controlar porra nenhuma. Ficava cinco dias sem forças para levantar da cama, parecia que ia morrer por causa da quimioterapia. Tive uma fadiga gigantesca. Meu Deus, não sou nada. Estou aqui, na maré. O que podia fazer era tomar os remédios. O resto estava nas mãos de Deus. A partir daí, não tive mais aflição. A única coisa que você tem controle é sobre seus sentimentos, a coisa mais importante que todo ser humano tem, além da saúde, claro. A nossa grande missão é ser melhor todos os dias.
Acredita que as pessoas vão mudar depois dessa pandemia?
Não tenho certeza de nada, mas a minha impressão é que vai mudar quem já estava mudando. A pandemia foi um empurrão para um abismo bom. No entanto, o ser humano tem memória curta e, para ele não se esquecer, tem que ter um sofrimento gigantesco. Sofrimento mesmo é quem está lá, ferrado, na favela, vendo gente morrer sem seguro saúde. Se passar mal, vai para uma UPA, se der sorte vai ser bem atendido, do contrário vai morrer… As pessoas que conheço não estão passando por sofrimento algum, apenas cerceamento. E se alguma delas pegou a Covid-19, deve estar se perguntando o motivo, tamanha arrogância. Como peguei isso? De algum grã-fino, ora! Quem trouxe foi gente voltando da Europa. Pobre não vai para a Europa. Pela primeira vez na história das doenças do mundo, o rico está matando o pobre. O mundo foi ficando chato, anormal, egoísta. Tem uma coisa que define mais o ser humano atualmente do que selfie? É você mesmo, seu umbigo. Todo mundo virou jornalista, divulgador do seu próprio ser. Muita gente não vive, sobrevive. Eu não. Eu vivo, com todas as alegrias e todas as dores.
No vídeo deste domingo (24/05), Carlos fala sobre autocrítica: