Se existe algo com que o psicanalista deve tomar cuidado, é com reducionismos de interpretação. Por exemplo, interpretar a complexidade social como se funcionasse como o psíquico, e vice-versa.
As áreas relacionam-se intimamente, mas não são redutíveis uma à outra. Entretanto, existe um pensar psicanalítico capaz de abrir caminho para discutir o que ocorre no plano social, uma vez que todos os seres humanos têm o social dentro de si. Na realidade, em certo ponto, são termos sinônimos desde que as primeiras organizações humanas se formaram.
Os psicanalistas ao redor do mundo têm se esforçado para trocar ideias e obter formas de ajudar a todos, abrangendo um contexto mais amplo do que seus consultórios particulares.
Assim, sem perder de vista a complexidade de ambas as áreas, podemos lançar mão de uma fonte poderosa de significados e, ao mesmo tempo, fonte de liberdade de pensamentos criativos: os mitos. Assim entendeu Freud desde que criou a psicanálise, empregando o mito de Édipo.
No mito de Édipo, temos uma passagem muito significativa, conhecida como “encruzilhada de Tebas”, uma cena de violência por conta do embate entre pontos de vista sobre o direito de passagem. De um lado, está Édipo dizendo que é mais jovem e mais forte e que, por isso, deve passar; do outro, está seu pai, Laio (embora, nesse ponto, Édipo não sabe que Laio é seu pai), que diz ter o direito por ser mais velho e mais rico. A violência do embate verbal espalha-se quando o condutor da carruagem de Laio, Polifonte, tenta atacar Édipo com uma lança. Édipo defende-se, inverte a lança contra Polifonte, que morre, e a carruagem sai em disparada, caindo num precipício, matando Laio.
Esse trecho do mito focaliza algo que está fazendo parte do nosso dia a dia, em função da epidemia do coronavírus. Políticos batem-se de frente, com argumentos opostos, enquanto reivindicam que seus argumentos são a mais pura verdade. O nome dessa atitude é arrogância.
Na encruzilhada, temos dois objetos com o mesmo nome: o não direito do outro. Eles são dois porque o não direito pode ser algo que existia no passado, e não existe mais, bem como o que não existe no presente e que pode estar no futuro.
O problema complica-se quando se busca consciência do que está ocorrendo. Todos somos inexperientes em relação à epidemia desse vírus, e isso nos joga para uma consciência do que não se deve fazer, aproximando-nos da consciência inexperiente que temos dentro de nós. Isso significa que todos desenvolvemos consciência através de nossos pais, que nos diziam “não faça isso”, “não faça aquilo”, “não seja mal-educado”, e o “não” atinge infinitas possibilidades.
Na ocasião em que nossos pais nos diziam isso, tínhamos ainda uma consciência inexperiente e estávamos arriscados a fazer coisas muito perigosas, além de entender as proibições como abusivas. Nosso narcisismo infantil criava esse entendimento e interpretava tudo com muita severidade. Contudo, certamente, a atitude “severa” dos pais é muito mais suave do que a consciência que se forma numa criança inexperiente. Nossos pais tinham experiência sobre o perigo, e muita gente sobreviveu até hoje por causa dessa experiência.
Assim, o perigo de deixar crianças muito novas fazerem o que querem não é apenas pelas coisas terríveis que podem fazer, mas porque elas ficam à mercê de uma consciência muito dura e severa. Mais tarde, o perigo existente nesse sistema moral primitivo pode surgir lá do fundo, em situações de pânico social, e impor penalidades ao indivíduo, incluindo sentenças de morte. Uma dessas penalidades pode levar o indivíduo ao suicídio. Formas muito comuns são as exposições desnecessárias ao perigo.
Embora eu tenha usado imagens da infância, na realidade, estamos lidando com algo muito sério se for deixado sem ser tratado. Isso é o que torna a experiência analítica única e tão importante. Ela ajuda as pessoas a modificar suas ideias primitivas de certo e errado e também mostrar o que elas sabem sobre isso. A ajuda certamente não vem da emissão de fórmulas paternas ou maternas de certo e errado, mas do desenvolvimento de uma consciência ética que leve a uma autonomia social capaz de manter a capacidade crítica, ou seja, o indivíduo sendo capaz de ser ele mesmo, embora dentro das pressões grupais. Nenhuma educação ou sistema político fornecem isso, mas conhecer a si mesmo, seus desejos inconscientes, pode ser de grande ajuda.
O ato de conhecer a si mesmo implica integrar a ética profundamente em nossos espíritos, jamais esquecê-la, jamais renunciar a ela, jamais negociá-la, mesmo se perdermos a esperança de constatar sua realização.