A era da informática, com todas as facilidades que foi trazendo, veio acompanhada de duas graves vicissitudes. Uma delas é o crescente e exponencial isolamento entre as pessoas (vide o celular). A outra recebeu o nome de “vírus”, programas de computador que algumas pessoas, os “hackers”, desenvolvem com intuito de destruir os computadores dos outros — uma espécie de “cyber” terrorismo. Para combatê-lo, surgiu uma “vacina”: os “programas antivírus”.
Assim, a sequência semântica vírus/informática/isolamento/ terrorismo havia muito se instalado na vida de todos, fazendo parte da preocupação das pessoas, sendo empurrada dentro das mentes, tal como um martelo que bate num prego, cada dia mais.
No dia de hoje, as preocupações vão muito além da informática — atingem o Planeta, pois o terror causado por um vírus real, batizado de COVID-19, transforma o isolamento numa real solução para os seres humanos.
Com o decreto de “quarentena”, a comunicação apenas pela informática tornou-se a saída para milhões de indivíduos. Nada de contato direto. O “ao vivo” é preconceituado como algo perigoso entre as pessoas. Os usos dos conceitos estatísticos de Saúde Pública conferem realidade ao medo. A divisão de classes foi substituída pela etária e justifica isolamentos.
Antes desse quadro quase caótico, já eram assunto dos consultórios dos psicanalistas os aplicativos de encontros amorosos. Para muitos, conhecer pessoas “ao vivo” tornou-se algo que “nem pensar!”; contudo, pelos aplicativos, também não se tornou mais fácil. Como psicanalista, escuto que as desilusões são muitas vezes superiores aos acertos; os encontros tóxicos espalham-se como vírus. A ideia do aplicativo funciona como vírus antipensamento.
Enfim, tudo parece fazer valer as advertências do filósofo Deleuze: “O fundo do poço da vergonha foi atingido quando a informática, o marketing, o design, a publicidade, todas as disciplinas da comunicação apoderaram-se da própria palavra conceito e disseram: é nosso negócio, somos nós os criativos, nós somos os “conceituadores”.
Um reflexo desse estado vergonhoso de coisas atinge a imprensa, ressentida pelo modismo dos ataques feitos por governantes. Uma parte significativa dessa imprensa decidiu fazer “militância”, conceituando ideologicamente os fatos e, daí, “informando” de forma a impingir opinião — o que vem garantindo a perda acelerada da sua credibilidade. O conceito ideológico travestido de informação não consegue enganar, pois ele é uma forma simplória, estereotipada e simétrica dos preconceitos que os ataques veiculam. Assim, a Imprensa vem se tornando, cada vez mais, preconceituosa, portanto antidemocrática. Isso é virulência.
Muitos jornalistas se parecem, hoje em dia, com aquelas “obras de arte” do Expressionismo soviético — figuras abusivas pelos traços exagerados para mostrar uma coragem e um caráter que não possuem.
O filósofo Martin Heidegger disse certa vez: “Nenhuma época soube tantas e tão diversas coisas do homem como a nossa”. Todavia, em verdade, nunca se soube menos o que é o homem.
A psicanálise sempre foi uma reação prática contra esse destino asseverado pelo filósofo. Na contramão da atualidade, o interesse da psicanálise é saber o que é o homem.
Essa busca foi traduzida de forma singela pelo psicanalista britânico W.R.Bion. Ele disse que uma turbulência emocional é o resultado do encontro de duas personalidades — caso o contato entre elas seja suficiente para que se percebam. O estado emocional é uma perturbação cuja magnitude dificilmente será entendida como progresso, e a impressão resultante é que seria melhor se nunca tivessem se encontrado. Contudo, uma vez que se encontraram — e já que a turbulência emocional é inevitável , as partes podem decidir como tirar proveito de um mau negócio, ou como transformar uma circunstância adversa em uma situação vantajosa para ambos.
Podemos estar num tipo de universo de pensamento ou em uma cultura temporária, na qual não estamos imunes à dor da consciência de viver num universo que não conduz ao nosso bem-estar. Ousar ter consciência dos fatos implica coragem.
Essa é uma qualidade que se pode desenvolver numa psicanálise. Refiro-me não à coragem vulgar, que significa, muitas vezes, expor-se a perigos e riscos de morte, mas a uma coragem do conhecimento que garante a relação viva entre as pessoas: a coragem de dar boas-vindas à sinceridade, à honestidade e à boa vontade.
Como psicanalista, desejo a todos muitas doses de honestidade, sinceridade e boa vontade. Estamos precisando muito dessas três, não somente no Congresso Nacional, ou na política em geral, mas também em todas as instituições públicas e privadas.