Em todo debate sobre o ser humano, envolvendo a transcendência, o trágico está presente. As palavras têm múltiplos significados; muitas chegam a ser sinônimas e, basicamente, vinculam-se à ideia de “ir além”, uma dimensão onde se encontra o desconhecido, e uma verdade que não pode ser alcançada. Portanto, um bom exemplo seria o pensar sobre o futuro.
Como o futuro, obviamente, não ocorreu, o trágico tem um vigor inesgotável, pois está sendo sempre reinventado, ou a ser inventado. Todavia, o trágico pode se transformar em tragédia, seja pelos conflitos emocionais particulares e grupais, seja pela propaganda de todo tipo e, certamente, pela mídia.
Atualmente, a mídia do “politicamente correto” cria a tragédia melhor do que o teatro. Sua ação chega a ser tão intensa que faz confundir uma atividade com a outra. Isso é algo extremamente perigoso, pois pode fazer milhões de pessoas confundirem a verdade com aquilo que se apresenta como o mais teatral. Aí o trágico deixa de ser trágico e se transforma em tragédia, ou drama, ou comédia.
Sabe-se que, desde a mais remota Antiguidade, para fazer uma “paixão” se tornar “trágica”, basta que encarne no ser humano, como se fosse um deus vociferante, cruel e destruidor.
Em outras palavras, toda vez que alguém se apresenta encarnando a onipotência e a onisciência, através de um discurso apaixonado, acaba agindo de forma estúpida e cruel. O discurso “apaixonado” tem sempre o viés do engano, do obscurecimento da verdade e da desonestidade. Acaba na tragédia.
Posso citar inúmeros exemplos que vão dos fãs de esportes, passando pelos acalorados discursos políticos, aos mais esdrúxulos e fanáticos pensamentos religiosos. Contudo, vou me deter num exemplo específico: num conhecido programa de televisão, uma jornalista faz uma pergunta aos três filósofos de plantão. A indagação, debochada, pseudoprovocativa, é sobre a importância do perdão.
A jornalista queria saber “dicas” para perdoar, no Natal, seus familiares que votaram em Bolsonaro, incluindo, entre eles, seu próprio pai. As respostas dos filósofos denunciaram de formas distintas e criativas a pergunta tendenciosa da repórter. Aliás, uma pergunta extremamente mal formulada, pois foi incapaz de perceber que excluiu o outro lado da moeda.
Essa negação vigente na pergunta é a tragédia. Assim, vale a pena dizer que tragédia é quando a liberdade de imprensa aparece sob o modo da condenação de quem é diferente, e não da espontaneidade do pensador.
Ao agir de forma tendenciosa, a repórter recria um “deus mau” que rege a transcendência. Ela acha que seus familiares adoram esse deus, mas ele só existe dentro dela.
A característica do Estado religioso (ou da mente religiosa) é arrogar a verdade política, quando, certamente, política não é religião e, na maioria das vezes, só faz é trancar a verdade. As teologias da modernidade estão muito disfarçadas de política e vice-versa, mas, infelizmente, parece que poucos percebem essa tragédia. Que cegueira emocional ou intelectual é essa?
Freud nos mostrou, com o Édipo Rei, de Sófocles, que o conhecimento de si desemboca no sofrimento: a verdade surge como o núcleo amargo do sofrimento. Édipo se cega por sua arrogância, e aí encontra a sua tragédia. Sófocles também mostrou que Édipo, cego e exilado em Colona, avança até a sua transcendência, ao final de uma longa e dolorosa meditação. A reflexão transcende a cegueira física e se traduz pela modéstia e pela capacidade de aceitar o desconhecido.
Esse movimento está inscrito no paradoxo do trágico, pois a transcendência inexorável não pode permanecer transcendência senão por meio de outro ato, pela invocação da bondade e, quiçá, do perdão. Caso contrário, a experiência da maldade cai novamente aquém do trágico, no inelutável, no fortuito, no absurdo, na grosseira ausência de sentido. Para manter-se no nível trágico, é preciso visar mais alto. É preciso se abster de mesquinharias na reflexão.
Nesse campo, é que o perdão sempre se encontra; o trágico vive na capacidade de se colocar no lugar do outro, na tentativa de entendê-lo, sem julgá-lo. Contudo, para entender, é preciso abrir mão dos ressentimentos, da empobrecida necessidade de vingança, e não estar de acordo com dogmas, leis próprias, e tantas outras coisas que substituem o pensar em busca de bodes expiatórios e exercícios de irresponsabilidade.