Eu tinha 15 pra 16 anos; queria muito fazer teatro. Desde muito cedo, vi um espetáculo do mímico Marcel Marceau e queria fazer mímica porque eu não conseguia falar — era tímida. Então, quando vi a expressão corporal traduzida na mímica, fiquei muito encantada. Logo depois, comecei a procurar cursos, mas não tinha ainda muita coisa para jovens. Marcelo Tas, que digo ser meu padrinho, eu conhecia da escola Macunaíma. Ele me perguntou se eu queria fazer um teste pro Antunes. Eu conheci o Antunes pelos meus pais, que foram ver “Macunaíma” e voltaram superempolgados, tanto que acordei no dia seguinte ouvindo os encantamentos deles por esse diretor. Eu não tinha nem idade pra assistir a peças. Alguns dias depois, Marcelo me ligou, e eu fui ao teatro. Era pra fazer um teste pra “Romeu e Julieta”, de Shakespeare. Achei tudo muito estranho: uma sala escura, um homem corcunda de cachecol e cachimbo, que falava muito sério com as pessoas. Todo mundo passava com muitos livros pra lá e pra cá. Eu me assustei com aquilo e falei: “Marcelo, é aqui que você quer que eu fique?”. Eu tinha muitos interesses na época: fazia esgrima, tocava flauta transversal, estudava muito de Medicina, que era pra mim a grande rival do teatro. Depois, ele veio conversar comigo; fiz o teste.
O Antunes olhou pra mim e disse: “Você é muito espontânea“. Eu não tinha dimensão nem noção de onde estava, com quem e o que estava fazendo. Ele disse que tinha que ver outras atrizes, mas tinha que me ver de novo. Eu lembro porque era feriado, 15 de novembro, e eu ia visitar minha avó no interior. Ele riu da minha ingenuidade; disse que entendia, pra eu ir vê-la, que qualquer coisa ele me ligaria. Caiu a minha ficha de que era um grande diretor. Ele me escolheu e voltei esfuziante, muito feliz. Tive que ser emancipada – meus pais foram lá conversar com o Antunes. Então, eu era meio protegida nesse sentido, por ser a mascote do grupo. Entrei no teatro sem ter noção do que era um teatro, não tinha ideia. Lembro que, quando estreei, me senti levitando, e a plateia era um dourado imenso. Eu flutuei ali, sensação inesquecível pra mim. Não fiquei nervosa nem nada porque aquilo já estava em mim. Eu vivia aquele mundo 24 horas por dia; era natural como estar em casa. Acho que talvez essa inocência e espontaneidade o tenham cativado tanto — talvez fosse isso que ele procurasse na Julieta.
Fiquei quatro anos com Antunes, entrei pro grupo Macunaima e fizemos “Macunaima”. Participei das viagens pelo mundo; fomos a lugares incríveis. Eu convivia, com toda a naturalidade, com os grandes nomes do teatro internacional porque “Macunaima” foi um carro-chefe, estrondo reconhecido mundialmente. Foi marcante tudo que vivi com ele. Acho que ontem, no velório, no teatro (porque não poderia ser em outro lugar, a não ser no Teatro Anchieta), percebi o quanto do Antunes tem em mim até hoje — realmente, uma marca. E fiquei muito feliz de ver que ali havia pelo menos seis gerações de atores ou mais que também compartilharam de alguma forma — algumas mais dolorosas e outras mais tranquilas, cada uma em uma fase diferente. A gente se identifica. Foi muito lindo ver a Laura Cardoso, por exemplo, e a juventude que estava lá preparando o espetáculo numa grande comunhão, como uma grande família.
Eu perdi meu pai muito cedo, aos 28 anos; convivi com o Antunes mais tempo do que com meu próprio pai. Fiquei só quatro anos, mas eu sempre ia vê-lo. Foi uma referência, pelo lado bom e pelo lado ruim, porque ele era sempre muito rigoroso, com uma exigência absoluta — o artista tinha que ser um cidadão do mundo, um criado, uma pessoa que fosse culta em todos os sentidos. Ele estudava obsessivamente. Nós tínhamos muito pudor no sentido de começar um texto, começar um autor. Estudávamos tudo sobre aquilo, principalmente pela imagem, nos museus a que ele nos levava, além das referências que trazia de quadros e tudo o mais.
Eu venho de uma família que também tinha muito interesse pela arte; então, nisso, ele combinava com meus pais, num certo sentido. Ele formou muita gente nesse pensamento de um rigor e religiosidade… Eu brinco que o Antunes era o jesuíta; Zé Celso, o pagão; e Gerald (Thomas), o judeu. Minha resistência de ir pra televisão veio do Antunes. Lembro a primeira pergunta que ele me fez: “Você quer fazer arte ou ir para a TV?”. Resisti a coisas incríveis por ele. Só depois eu me permiti fazer “Mandala” e “Que rei sou eu” (uma novela maravilhosa superteatral, em que eu pude usar minha esgrima e tudo que aprendi). O Daniel Filho e o Roberto Talma suaram pra me convencer.
Enfim, vai ser muito estranho não tê-lo mais: ele está tão enraizado naquele teatro, naquele espaço… Ele era dessas pessoas que a gente achava que não ia morrer nunca, que são tão fundamentais. E eu fui moldada, literalmente, por ele. Depois tentei muitas vezes quebrar o Antunes dentro de mim, com outros diretores e montagens. Tentava me libertar, eu não deixava de ser uma intérprete dos movimentos e dos pensamentos dele. Foi meu verdadeiro mestre e, sobretudo, um homem que deixou uma história bonita.
Giulia Gam começou a carreira teatral aos 15 anos com o diretor Antunes Filho, que a selecionou para a montagem de “Romeu e Julieta”, em 1984. Com a companhia de Antunes, viajou pela Austrália, Europa, Estados Unidos e Israel, e ganhou três prêmios como atriz revelação. Trabalhou também com importantes diretores do teatro, como José Celso Martinez e Gerald Thomas, e participou de mais de 35 obras na Rede Globo em 30 anos de emissora.