Ao ouvir falar em jiu-jítsu, você se lembra de quem? Dos Gracie, certamente. Rorion Gracie, o primeiro dos nove filhos de Hélio (1913-2009) – criador da arte marcial brasileira e praticamente uma entidade para os amantes desse esporte -, é uma das poucas pessoas no mundo a ter conquistado o grau 9, a faixa vermelha no jiu-jítsu, em cerimônia de entrega feita pelo próprio pai, em 2003; esse título é conferido, geralmente, por federações. Rorion soube da novidade pela Internet: sua gigante família (mais de 300 integrantes, já na terceira geração de lutadores) foi declarada Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial da Cidade do Rio, em projeto de lei do vereador Felipe Michel. O decreto reconhece a família como introdutora do jiu-jítsu no Brasil, através dos irmãos Carlos e Hélio, com seu auge na cidade, com a precursora Academia Gracie da Avenida Rio Branco. Também consta no documento o reconhecimento pela criação do UFC – Ultimate Fight Championship, maior evento de lutas da história, criado por Rorion, uma revolução no mundo da luta.
Atualmente aos 66 anos, Rorion é dono de uma energia inesgotável e, sem perder o fôlego, conta empolgado sobre novos projetos e diz que está só começando – a meta de vida é ganhar o prêmio Nobel da Medicina. Hein? Isso mesmo. “Tive uma epifania: não vim para a América do Norte para ensinar as pessoas a lutar, mas a viver”, diz ele sobre a ideia de escrever, em 2012, o livro “A Dieta Gracie”. Desde então, roda o mundo dando palestras motivacionais sobre alimentação. “Quero o Nobel porque a dieta cura sem medicamentos”. Sua vida vai virar um filme. E ele também prepara uma biografia.
Como é ser um patrimônio imaterial?
Eu soube disso há pouco tempo, pela Internet. Achei maravilhoso e postei no meu site – acho que é uma honra muito grande, e é incrível uma família ser patrimônio cultural. Fiquei feliz e orgulhoso, afinal de contas uma das coisas que mencionam ali é o fato de meu tio Carlos ter aberto a primeira academia no Rio, em 1920 e poucos, e o papai ter se tornado esse ícone mundial do jiu-jítsu, aperfeiçoando a arte mais eficiente que existe e, depois, o fato de a família ter criado o UFC. Acho que é um feito especial pra gente.
Para o mundo das artes marciais, o que significa ser filho de Hélio Gracie?
Pouca gente tem a faixa vermelha, e eu sou a única pessoa que a recebeu do meu pai. Melhor que ser filho dele não há.
Como tudo começou?
Aos 17 anos, fui para os Estados Unidos a fim de passar um mês. Fiquei num hostel e deixei meu dinheiro e passaporte com o recepcionista, que me roubou e, para tranquilizar papai, disse que ficaria por mais um tempo. Comecei a me virar, fazendo serviços domésticos e cheguei a pedir esmola numa viagem ao Havaí e dormi em cima de jornais na rua. Aprendi muito cedo que toda coisa ruim vem para o nosso bem. Voltei ao Brasil depois de um ano, mas com a cabeça na Califórnia. Juntei dinheiro por dois anos, voltei e fiquei na casa de um amigo cuja mãe trabalhava com produção de cinema em Hollywood. Ela indicou meus serviços domésticos para as amigas artistas. Um dia, caí na casa de uma senhora cujo marido era assistente de direção daquela série Starsky & Hutch (“Justiça em Dobro”), e ela falava que eu era boa pinta e tinha que estar no cinema. Pendurei minha vassoura de faxineiro e comecei a fazer ponta como figurante: na ‘Ilha da Fantasia’, ‘Casal 20’, ‘As Panteras’, todos os shows que passavam na TV americana. Deu pra juntar um dinheiro e aluguei uma casinha em Redondo Beach. Coloquei um tatame na garagem e comecei a dar aula. Eu era um professor de jiu-jítsu excepcional: dava a primeira aula de graça; se você trouxesse um amigo, ganhava a outra de graça, e o marketing foi funcionando. Larguei a figuração e cheguei a ter mais de 600 alunos. A culpa não foi minha – alguém tinha que ser o melhor, e era eu.
Chegou a ficar amigo dos atores de Hollywood?
O Chuck Norris fez aulas comigo. Hoje em dia, não sou seu amigo, mas ele me manda cartão de Natal todos os anos. Trabalhei com Mel Gibson, coreografando as cenas do ‘Máquina Mortífera 1’ e, no terceiro da franquia, tinha a Rene Russo – eu tomei porrada dela numa cena com Danny Glover.
E a criação do UFC?
Ainda na minha garagem, vi que esse negócio de luta não ia acabar nunca; daí tive a ideia de criar o UFC em 1993. Montei o evento, juntei meus alunos e coloquei o Royce, meu irmão, para competir. Ele, magrinho, ganhou de todo mundo, mostrando que o jiu-jítsu era o melhor esporte. Depois disso, o Exército americano me ligou e criei um currículo especial para eles, que estão usando a arte marcial há 25 anos. Hoje em dia todos a usam: o FBI, a Marinha, o pessoal que protege o presidente…
Acredita que seria diferente se o Brasil acatasse a ideia?
A polícia seria outra, lógico. Tá brincando? Mas santo de casa não faz milagre: tem que fazer sucesso no mundo inteiro pra alguém acreditar. Isso é uma vergonha. De qualquer maneira, cada país tem o Exército que merece. O jiu-jítsu está presente em 196 países.
E a “Dieta Gracie”?
Há uns anos, tive uma epifania: não vim para a América do Norte para ensinar as pessoas a lutar, vim para ensinar as pessoas a viver. Daí surgiu a ideia do livro. Meu tio Carlos, irmão mais velho do meu pai, que não era médico, passou 65 anos estudando a combinação dos alimentos e chegou a conclusões impressionantes de como você pode comer bem, misturando os alimentos certos em cada refeição. Nasci tomando mamadeira de melancia batida com banana e não sei comer de outro jeito. Se você tiver a síndrome do cólon irritado, a dieta Gracie cura.
Você largou os tatames?
Ainda treino, dou aula, mas meu foco é nos seminários motivacionais para o pessoal comer direito. Vou ao Brasil umas cinco, seis vezes por ano, para fazer palestra, mas minha meta é ensinar as pessoas a ter um estilo de vida saudável através da alimentação. Os primeiros 40 anos de aula de jiu-jítsu serviram para criar uma plataforma de credibilidade do nome Gracie. Graças a Deus, eu consegui, para ensinar as pessoas a viver melhor.
Projetos futuros?
Acabei de assinar um contrato com uma produtora americana, para fazer um filme sobre a minha vida; a ideia é lançar em 2020. Estive com o roteirista, e ele disse que minha vida daria um seriado no Netflix, mas, antes do filme, vou lançar uma biografia. Meu plano é ganhar o prêmio Nobel de Medicina. Como? Acontece o seguinte: o Bob Dylan ganhou o prêmio Nobel de Literatura porque escreveu ‘Blowing the Wind’. Se o Bob pode, o Rorion pode. O dia em que eu mostrar a eficácia de cura da dieta Gracie, vou ganhar o Nobel. Vou chegar lá.
A longevidade tem segredo?
A dieta Gracie. Se você comer bem, você está bem; se comer mal, está mal. Eu estou bem o tempo todo – nunca tive uma cárie na minha vida e estou felicíssimo. As pessoas que seguem a dieta mudam de vida e começam a dar testemunhos maravilhosos. Não quero vender livro, quero salvar vidas.
Mudando de assunto, muito está se falando em feminicídio. Você acredita que jiu-jítsu é uma arma para a mulher?
O primeiro curso especializado só pra mulher fui eu quem inventei, o ‘Women in power’, há 25 anos – acho fundamental para a mulher aprender a se defender da maneira correta. O grande problema é que a maioria não sabe ensinar o jiu-jítsu apropriado para a mulher. Eles colocam a mulher para lutar, mas tem mulher que não gosta, não quer ser lutadora, ficar com a orelha amassada, coisa mais horrível; então, ela tem que aprender a defesa pessoal para determinadas situações e conseguir afastar o atacante e fugir do cara. Não é dar porrada em homem, é fugir do perigo.
Pretende voltar ao Brasil? E como vê a situação do Rio?
A graça é poder ir e voltar; não quero morar num só num lugar. Viajo, faço meus seminários, palestras e ando pra lá e pra cá. Mas, como carioca da gema, a situação da cidade parte meu coração. A pessoa não pode pegar uma praia e, em qualquer lugar que você vá de carro, pode nunca mais voltar – uma pena… O Rio está decadente. Fico pensando o que pode ser feito, esperando entrar um político novo que queira consertar isso. O Brasil tem o potencial para fazer melhor; pode demorar um pouco porque tem que reeducar a mentalidade do povo, mas o Brasil tem o potencial de ser o melhor do mundo, disparado. Às vezes, vou a São Paulo e nem tenho vontade de ir ao Rio, por causa do perigo. Mas tenho saudades, e todo dia espero que alguém dê um jeito nisso.