“O Largo do Boticário foi a minha única residência depois do meu casamento com o Paulo Eduardo Klabin, durante 21 anos, nesse especial conjunto arquitetônico. Nossos filhos, Bruno e Alexandre, nasceram e foram criados ali. Instalado na periferia da Mata Atlântica, com o rio Carioca correndo entre o Beco e o Largo, minha casa era cercada de mangueiras e jaqueiras centenárias e bastante frequentada por diversos animais silvestres, como micos, porcos-espinhos, gambás, entre outros. O primeiro morador foi o famoso boticário Joachim Luiz da Silva Souto, que tinha a Família Imperial entre seus clientes; por causa dele, em 1831, o lugar foi nomeado Largo do Boticário.
Essa primeira casa, hoje de número 32, foi construída em 1846, pelo Marechal Joaquim Alberto de Souza da Silveira, que trabalhou para o Imperador Dom Pedro II e era o padrinho de Machado de Assis. O outro dono foi Rodolfo Gonçalves da Siqueira, o Ruddy, colecionador e diplomata, que, nos anos 1930, foi morar lá. A partir de 1942, essa casa pertenceu a Magu Leão, muito culta, amiga de vários artistas e intelectuais, como Oscar Niemeyer, Candido Portinari, Manuel Bandeira, Bruno Giorgio. Encontrei também várias vezes o Burle Marx em sua casa. Ambos trabalhavam no Departamento de Parques e Jardins, com Lota Macedo Soares. No Beco do Boticário, moravam também o artista plástico Augusto Rodrigues e a crítica teatral Bárbara Heliodora.
Nos anos 20, durante a gestão do prefeito Antonio Prado, o chão de terra e o calçamento pé-de-moleque original foram substituídos por lajes de pedra capistrana. Nessa época, o empresário Edmundo Bittencourt, fundador do jornal O Correio da Manhã, comprou os terrenos disponíveis e resolveu ali construir as primeiras casas em estilo neocolonial, mudando a paisagem do Largo. O jovem arquiteto Lúcio Costa projetou a unificação das casas 20 e 22, transformadas em uma mansão da família Bittencourt. Rosane e John Sommers, casal de ingleses que produzia objetos de estanho no “british style”, em Sâo João del Rey, moravam na parte de cima, onde mantinham um antiquário.
Uma das lembranças mais intensas nesse tempo de requinte e glamour é que nós, moradores, raramente fechávamos as portas de nossas casas durante o dia. Era um lugar bucólico, um espaço de beleza e charme. Foi palco de festas memoráveis, muitas em minha casa; entre elas, está o jantar “black-tie” que ofereci, com minha sogra, Beki Klabin, e a Air France, para o Charles Aznavour. Revirando as minhas memórias, lembro-me de ter cedido a casa para a chamada de fim de ano da TV Globo, em 1973. Em 1979, foi escolhida como um dos cenários do filme do agente secreto James Bond, “007 Contra o Foguete da Morte”, com o ator Roger Moore. Eu recebia com uma constância impressionante, aos sábados, sem hora para terminar; servia até o café da manhã. Eva Klabin, tia do meu marido e nossa madrinha de casamento, raramente saía de casa, mas adorava ir aos meus almoços. João Emanuel Carneiro era levado pela mãe, Lélia Coelho, minha amiga, para brincar com os meus filhos. As casas eram meio interligadas, mas não posso falar muitas coisas que testemunhei – rsrs!
Em 1986, o Largo foi declarado área de proteção ambiental e Cultural do Cosme Velho e, em 1990, esses imóveis foram tombados pelo INEPAC: o interior podia ser reformado, mas as fachadas não tinham autorização. E é lamentável que, a partir dos anos 90, as casas tiveram um enorme processo de deteriorização, sem conservação.
Syivia Bittencourt voltou da Europa. Ela era a proprietária das seis casas tombadas, que foram vendidas e serão recuperadas pela rede Accor, que pretende construir um hostel. Espero que essa nova proposta recupere o tão querido Largo do Boticário, vindo a ser mais um belo cartão de visitas para o RJ e para uma esfera da cultura já que, recentemente, foi inaugurada a Casa Roberto Marinho ali perto. Sylvia, a primeira jornalista brasileira a receber o prêmio Maria Moors Cabot como correspondente de guerra da United Press e autora da antiga placa de bronze no centro do Largo do Boticário, afinava o tom: ‘Vós, que morais neste recanto, sob a bênção da água e do silêncio, lembrai-vos que de vós depende o encanto daqui.'”
Vanda Klabin é historiadora e curadora (Foto 40 Forever)