“Ultimamente, estamos repetindo, quase como um mantra, que a Polícia Federal precisa ganhar, de uma vez por todas, a sua autonomia, principalmente para não ficar nas mãos do Ministro da Justiça da vez, e de suas circunstâncias políticas. O trabalho da polícia judiciária é eminentemente técnico e não admite quaisquer reparos ou interferências de cunho político. Nós trabalhamos na inarredável busca pela “verdade real” dos fatos investigados, matéria prima e objeto do Direito Penal, tema central de nossa atividade fim. E para a preservação dessa “verdade real” só interessa conhecer sobre a operação aquele que nela labuta, a saber: juízes, procuradores da república, peritos, agentes, escrivães e delegados federais.
Desde que começou a era das megaoperações da PF, nos idos de 2003, iniciou-se uma discreta, mas incômoda, pressão política sobre diretores e superintendentes para que estes informem “com certa antecedência” as nossas operações. Alguém, naquela época, inventou que “não avisar nada”, por parte da PF e do MJ, seria uma “grosseria” com os companheiros de governo. Essa prática deletéria nasceu, desta feita, com o manto de um gesto de “boa vizinhança”. Algo bem ao estilo do lulopetismo. O interesse, porém, era bem outro.
Isso funcionaria muito bem na Dinamarca ou na Finlândia, onde praticamente não há crime no estamento político-governamental. No Brasil, quase cem por cento das grandes fraudes e desvios investigados pela PF contam com “bênçãos” ou ações governamentais positivas, com apoio daqueles que têm o poder direto de indicar e nomear os nossos chefes. Vivemos, até o impeachment de Dilma Rousseff, numa verdadeira cleptocracia.
Eu arriscaria a dizer que, hoje em dia, é menos prejudicial vazar uma operação num boteco do bas-fond do que numa antessala ministerial em Brasília. Não enfrentamos criminosos marginais, mas sim malfeitores nucleares. Desta feita, em tese, nem o diretor-geral precisa ser informado sobre qualquer detalhe, principalmente sobre os alvos. Quando muito, o superintendente regional (e a sua linha hierárquica que se ocupa da logística) deverá saber da operação para que os recursos humanos e materiais sejam alocados a contento. Se o chefe da PF não precisa saber, quanto mais um Ministro da Justiça, que ocupa cargo político.
Lendo com atenção o bombástico teor das delações do casal conhecido como “marqueteiros baianos”, confirmamos que a prisão de João Santana foi vazada criminosamente. Santana tinha um voo marcado do Panamá para o Brasil. A deflagração da Operação Acarajé foi agendada para a manhã em que ele desembarcaria no aeroporto Tom Jobim. O marqueteiro não embarcou e frustrou o planejamento original. Só desembarcou no dia seguinte, sem trazer seu laptop e seu celular. Aparentemente ocorreu um dos tais “vazamentos hierárquicos” já que o MJ avisou à então presidente, que, por sua vez, avisou aos criminosos. O que é gravíssimo nessa situação não é apenas a possibilidade de um ministro petista vazar informações para detonar a operação. O que temos que perceber é que o modelo atual permite, aceita e admite o absurdo de um Ministro da Justiça – ocupante de cargo político – ficar sabendo com antecedência de operações policiais, vulnerabilizando sua possibilidade de sucesso.
Essa é a moral da história. Há um “furo” enorme e permanente, que transcende governos, permitindo “vazamentos hierárquicos”. Vamos descobrir o nome e o sobrenome desse “furo” e dar um fim a essa situação. Arrisco-me a dizer que esse “furo”, filosoficamente falando, é a ausência de autonomia da instituição Polícia Federal – ausência de blindagem, de um mandato, para o nosso diretor-geral.
Não podemos deixar de registrar que há um erro nodal, acadêmico, do ponto de vista policial: a simples conjugação do verbo “avisar” no planejamento operacional de uma ação repressiva da polícia judiciária. Quem avisa, amigo é, e, na atividade policial, não se avisa, em hipótese alguma, sobre qualquer ação repressiva a ser deflagrada contra quem quer que seja. A não ser que o nosso chefe não tenha como não dizer “não” ao ministro, que é o chefe dele.”
Jorge Pontes é delegado da Polícia Federal e foi diretor da Interpol do Brasil.