Logo que o ministro da Justiça Alexandre de Moraes anunciou o Plano Nacional de Segurança Pública, como resposta às rebeliões nos presídios de Manaus e Boa Vista, uma das primeiras críticas à proposta de construção de mais presídios foi a de Wálter Fanganiello Maierovitch. “Estão colocando esparadrapo em fratura exposta”, disse o desembargador aposentado do TJ de São Paulo, Cavaleiro da República Italiana pela contribuição na luta antimáfias e conferencista internacional sobre criminalidade transnacional e drogas. “Antes de anunciar um Plano Nacional de Segurança Pública, o governo Temer deveria colocar o sistema penitenciário em regime de UTI hospitalar e chamar para si a responsabilidade por soluções que os estados federados não conseguem resolver”. Maierovitch não tem dúvidas de que a situação é gravíssima: “A segurança da população não conta. Em breve, as organizações brasileiras, que já cortam cabeças e extraem corações dos rivais, terão a força dos cartéis mexicanos”.
Como tratar, de imediato, a questão do déficit de vagas no sistema prisional sem ter que aguardar a construção de mais presídios? Como criar as mais de 200 mil vagas que estão faltando?
“No Brasil, a taxa de retorno ao crime de ex-detentos é de 80%, enquanto que na Europa está na faixa dos 20% e, nos EUA, nos 25%. Os presídios, com essa recidiva, se retroalimentam, é como se fosse um ioiô. O sistema está falido e não se investe em ressocialização. Ao contrário, a ideia é encarcerar, construir ainda mais presídios, mas até quando? A cadeia tem o seu componente punitivo, mas não devemos esquecer da função ética da emenda, da correção moral. O Marquês de Beccaria, no seu livro ‘Dos delitos e das penas’, de 1764, já pregava que o sistema tem que mostrar ao criminoso que não delinquir de novo é a melhor relação custo-benefício, mas, para isso, tem que existir programas de ressocialização e, a disciplina, restabelecida dentro dos presídios.
Em relação a uma solução mais emergencial, a secretária nacional de Direitos Humanos, Flavia Piovesan, defende, por exemplo, que só os bandidos mais perigosos fiquem em regime fechado. Sobre isso, faço um adendo: não devemos esquecer que corrupção é, também, um crime perigoso e que corremos o risco de substituir a nossa democracia por uma cleptocracia”.
Que atividades de ressocialização aplicadas com sucesso no exterior poderiam também ser usadas aqui no Brasil?
“A primeira coisa a ser feita é acabar com a ideia de Estado paralelo, fazer com que o chefe de quadrilha não seja mais chefe de nada, que ele se sinta desplugado e vigiado. Na Itália, onde existem cárceres só para mafiosos, até para eles há investimento em ressocialização. Num livro que foi lançado em dezembro e está sendo muito comentado, ‘A colloquio con Gaspare Spatuzza’, a autora, a professora da faculdade de jurisprudência da Universidade de Palermo, Alessandra Dino, conta que Gaspare, um dos mais sanguinários mafiosos que já existiram, começou a estudar teologia online na prisão e, um dia, caiu a ficha: ele se tornou colaborador da Justiça e fez delações importantes. Hoje, vive em regime aberto com outra identidade, num local escondido, com subvenção do Estado para sua subsistência.
Mas tudo tem que ser adequado de acordo com cada realidade. Na Holanda, quando trabalhei como juiz de execução penal num presídio-modelo, o menos preparado intelectualmente era bilíngue. Outra coisa que temos que ter cuidado no Brasil é sobre a chamada privatização dos presídios, que é inconstitucional. As empresas privadas podem, apenas, terceirizar alguns tipos de serviços, como o fornecimento de refeições, atividades de hotelaria como lavagem de uniformes ou o auxílio a agentes penitenciários no trato com os visitantes de presos em regime fechado. O trabalho do preso não pode ser delegado a particulares, sob o risco de se tornar trabalho escravo.
Como anda o preconceito no mercado de trabalho em relação a quem acaba de sair da cadeia? Houve algum progresso nesse sentido?
“Aqui, o egresso do sistema penitenciário não vai conseguir trabalho nunca, ainda mais que existe a questão cultural, a crença de que o presidiário ‘sai pior do que entrou’. Agora, se o ex-detento for de facção, ele encontra emprego imediatamente. Nos países civilizados, há todo um sistema de controle, de acompanhamento”.
Quando se fala em crime organizado, a ficção nos faz pensar em chefões vivendo fora de presídios, ostentando riqueza e tendo ligações com grandes autoridades políticas. No Brasil ele existe com essa característica?
“Já se escreveram bibliotecas e bibliotecas sobre a glamourização que o cinema, principalmente o americano, faz dos chefes de quadrilha, dos mafiosos. No Brasil, assistimos a líderes de quadrilhas cederem espaço a líderes pré-mafiosos, com controle social e de território (presídios), que continuam a comandar de dentro da cadeia. Mas eles não têm controle nenhum fora da política criminal. Vemos alguma sofisticação em casas de criminosos, como banheiras de hidromassagem, e só”.
Se as penitenciárias do país, um dia, forem destinadas a facções diferentes, como fica o detento que não está ligado a nenhuma delas?
“No lugar adequado, em outra penitenciária. Na prática, o lugar onde você mora leva o indivíduo a ser classificado como de determinada facção, mesmo que ele não tenha ligação com nenhuma organização criminosa – o que já revela um erro grave do Estado em não garantir segurança a esse cidadão.
Mas já houve uma época em que o sistema penitenciário brasileiro foi organizado, até elogiado pela ONU. A Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, foi modelo na década de 40, lá se desenvolveu um departamento de biotipologia onde o preso era analisado individualmente por suas características de periculosidade”.
Você defende a criação de uma polícia penitenciária. Em que aspectos ela é melhor do que o sistema dos agentes penitenciários? Com essa polícia poderíamos resolver o problema dos celulares nos presídios?
“Novamente citando como exemplo a Itália, a polícia penitenciária tem seu código, é bem treinada, com monitores em tudo que é canto, e uma divisão de inteligência constantemente dedicada a investigar se o policial é corrupto, se ostenta sinais de riqueza. O agente penitenciário brasileiro é um funcionário público, descuidado e destreinado e vulnerável à corrupção, que favorece a entrada dos celulares nos presídios. Nos encontros internacionais em que participo, nas horas de descontração é inevitável: sou sempre provocado sobre a questão dos celulares nos presídios do Brasil”.
A lerdeza da Justiça tem que parcela de culpa nesse caos? Por que você acha que a duração das penas não precisa ser maior?
“Pela Constituição brasileira, não temos pena de morte, prisão perpétua e o máximo do tempo de cumprimento da pena é de 30 anos. Fora isso, existe a progressão prisional (passagem do regime fechado para semi-aberto e depois para aberto) com o cumprimento de 1\6 da pena (condenado reincidente a seis anos passa ao semi-aberto após um ano). Como faltam vagas no semi-aberto, passa-se – por habeas corpus impetrado – para o regime aberto, na modalidade de prisão domiciliar e sem nenhuma fiscalização.
Não faz sentido aumentar o tempo de permanência em um lugar onde não se investe na reabilitação do preso e onde, na maioria das vezes, o que separa o preso do regime fechado do semi-aberto é uma parede fina, por onde eles se comunicam. O processo brasileiro é, em sua natureza, de duração elevada, por isso é primordial a separação dos presos provisórios dos que já estão em execução de suas penas.
Também não é hora das soluções extremistas, nem à esquerda, que em tudo recorrem aos direitos humanos, nem à direita, exigindo a pena de morte. É encontrar o caminho intermediário, sempre tendo em conta a questão humana”.
É remota a probabilidade de uma rebelião como essa de Manaus e Roraima acontecer no Rio?
“Vivemos um tempo de muitos factóides. Nas últimas semanas, fui procurado por três grandes veículos internacionais que levaram a sério a suposição de que o PCC pode assumir o lugar das Farc na Colômbia. Chegamos a um nível de estultícia total. Só um controle de verificação rigorosa nos presídios pode nos revelar alguma coisa sobre isso. O resto é chute, especulação.
No nosso Brasil, e nos últimos anos, as antigas quadrilhas e bandos ganharam musculatura e se transformaram em associações delinquenciais pré-mafiosas: para ocupar o patamar de mafiosas, falta a elas atingir a transnacionalidade – por enquanto, elas têm ação transfronteiriça, avançando sobre os territórios da Bolívia, Peru e Colômbia – e saber operar planetariamente na lavagem e reciclagem de capitais (para se ter ideia, a Ndrangheta calabresa já operou na bolsa de Frankfurt).
O erro estratégico em relação a Comando Vermelho e o PCC foi de prender líderes, permitir que eles continuem mandando de dentro dos presídios e não se preocupar com o capital movimentado. A ideologia dessas facções é o lucro, logo o combate deve ser feito contra a economia do crime. O sistema penitenciário faliu, o crime organizado domina e o governo Temer não assume responsabilidades, esperando que os governos estaduais tomem as iniciativas.
Está em jogo, a segurança nacional, questão da competência do governo federal. Temer tem a seu dispor os artigos 34,III, e 21,III, da Constituição, ou seja, agir para por termo a grave comprometimento da ordem, assegurar a defesa nacional. Mantido o sistema do jeito que está, só uma ‘pax mafiosa’ – a trégua entre organizações criminosas rivais e em busca de hegemonia – é que poderá evitar novas tragédias e desumanidades”.