Num dos dias em que passei a sós com uma pessoa muito querida, depois da sua doença, resolvi entrevistá-lo (de brincadeira), para diminuir o tédio, o tempo, a dor, por vê-lo ali sem autoridade (onde estaria indo a altivez, a opinião, o comando?).
Fiz as perguntas, sabendo que pessoas inteligentes preferem não enganar a si mesmas sobre a realidade – fui escrevendo as respostas, no modelo dessa página morna que tenho no site. A contragosto, ia respondendo, ele estando nas mãos dos outros, melhor seria tentar agradar – certamente me achando meio maluca. Como aprendi com ele mesmo a relativizar um pouco a opinião alheia, segui. Foi num dia recente de calor, depois de comermos acarajés, apesar de a vontade médica ser meio contrária. Não consigo ainda escrever com distanciamento do drama do Parkinson, tão cruel.
Num dia da infância, perguntei “por que não ia à missa e rezava como alguns dos seus amigos”, e ele disse: “Não tenho tempo, prefiro rezar com atitudes”. Entre tantas, essa resposta nunca esqueci. Lembrava também que deixou de estudar antes da hora, na adolescência, para tomar conta de terra e gado, por ser o filho mais velho, quando seu pai morreu – o que não comprometeu em nada o talento para a matemática, um dos maiores da região. Dias depois dessa tarde, ele morreu. Resolvi publicar a entrevista, desse homem de grandes qualidades humanas, por toda a sua vida.
UMA LOUCURA: “Estou quase doido da cabeça com essa doença; isso é uma loucura.”
UMA ROUBADA: “Estar fora do meu normal.”
UMA IDEIA FIXA: “Ando com a cabeça desequilibrada. Penso na morte como o fim de tudo, não existe nada além.”
UM PORRE: “Não estar preparado pra tudo na vida.”
UMA FRUSTRAÇÃO: “Não poder viver mais tempo lá em casa (na fazenda) do que em cidade grande.”
UM APAGÃO: “Apagaria da cabeça que a gente não vale nada (por ser perecível e morrer), apagaria também os ladrões da política, responsáveis pela fome, miséria e tudo de ruim que acontece no Brasil.”
UMA SÍNDROME: “O que é isso?”
UM MEDO: “Medo de morrer e deixar meus filhos.”
UM DEFEITO: “Ter sido criado num lugar atrasado; meus defeitos vêm daí.”
UM DESPRAZER: “Não ser dono 100% dos meus movimentos, não estar mais mandando na minha vida.”
UM INSUCESSO: “Só me lembro de cama e caixão.”
UM IMPULSO: “Impulso? Já perdi isso há muito tempo. Gostaria de ter qualquer impulso de volta – quem dera tivesse!”
UMA PARANOIA: “Não conheço essa palavra.”