Com a decisão do STF, quarta-feira (10/06), de liberar a publicação de biografias sem a necessidade de autorização prévia da pessoa retratada, Paulo Cesar de Araújo, autor de “Roberto Carlos em detalhes”, não admitiu abertamente, mas deve ter se sentido vingado em seu embate com o cantor. Do tipo que mede as palavras ao falar, esse baiano de Vitória da Conquista foi a Brasília assistir à sessão de julgamento e disse, apenas, ter se sentido “agradavelmente surpreso” com a suprema corte do país.
Ele luta na Justiça desde 2007 para que seu livro, censurado pelo cantor e retirado de circulação, volte às prateleiras – o que ainda não parece plenamente garantido. Mesmo depois da decisão do STF, Roberto Carlos não deu sinais de desistir da batalha jurídica nem de aceitar que a obra de Paulo César seja relançada. Na quinta-feira (11/06), através do seus advogados Antônio Carlos de Almeida Castro e Marco Antônio Bezerra Campos, o cantor divulgou um comunicado citando trechos do julgamento que garantem a quem se sinta ofendido em sua dignidade acionar o Poder Judiciário e, inclusive, determinar o recolhimento dos livros.
Mas nada disso parece desanimar Paulo Cesar. Professor do departamento de Comunicação da PUC do Rio e de História na FAETEC, em Niterói, ele nunca teve vida fácil: de família pobre, viveu um período em São Paulo antes de vir para o Rio. E como persistência é o seu forte, possui, hoje, um verdadeiro museu sonoro, com mais de 250 depoimentos gravados de artistas da MPB, numa época em que celular era raro, e-mail não era conhecido e ele chegava a fazer entrevistas de um orelhão. Por isso, a expectativa de que ele consiga relançar o livro, resultado de 16 anos de pesquisas, continua grande entre seus leitores e admiradores. Amigo da coluna comenta: “O Paulo é uma das pessoas mais dedicadas e determinadas que existem”.
Paulo, você acredita que o Roberto Carlos vai ter coragem, realmente, de tentar censurar a nova edição de seu livro?
“Tentar ele pode, mas um novo processo contra mim causaria um desastre ainda maior à imagem dele. Porém, depois de vê-lo fazer aquela propaganda da Friboi, não duvido de mais nada em relação a Roberto Carlos. A diferença é que agora, dificilmente, ele vai conseguir proibir e apreender um livro. O contexto é outro. Como bem disse a ministra Carmen Lúcia na histórica sessão do STF. ‘Cala boca já morreu.’”
Até há pouco tempo ainda existia a dúvida se ele teria lido a sua biografia. Qual a sua opinião a respeito?
“Ele me proibiu sem ter lido o livro, conforme afirmou o seu próprio advogado, Marco Antônio Campos. Ele contou que a assessoria mais direta leu e conversou com o cantor sobre determinadas passagens da obra. É como se alguém condenasse um álbum de Roberto Carlos e depois dissesse que nem sequer ouviu o disco. Aliás, creio que, se ele tivesse realmente lido “Roberto Carlos em detalhes”, jamais iria tentar proibi-lo.”
Qual é seu sentimento em relação a ele atualmente? Você guarda rancor? Aceitaria um pedido de desculpas do Rei?
“Não tenho nenhuma mágoa. Sou historiador, pesquisador de MPB, e Roberto Carlos é apenas meu objeto de estudo. Não posso brigar nem ter mágoa do meu objeto de estudo. Eu apenas me defendo; mas não acho que a música “As curvas da estrada de Santos” ficou feia porque Roberto Carlos me processou. Lamento o que aconteceu, e lamento por mim e pelo próprio artista. Não era para ele ter esse triste capítulo na sua história. Ressalte-se, porém, que nunca me identifiquei muito com as ideias e posturas de Roberto Carlos. Ele é supersticioso, e eu tenho zero de superstição; ele é católico, e eu sou agnóstico; ele não gosta de política, e eu sempre participei dela; ele é Vasco, eu sou Flamengo; ele foi propagandista da Friboi, sou vegetariano. Ou seja, minha identificação com Roberto se deu apenas através da música. No mais, sempre estivemos em lados opostos. Essa polêmica das biografias é apenas mais um exemplo disso.”
Por tudo o que você sabe da vida do Roberto Carlos, qual motivo estaria levando ele a agir dessa forma? Medo de desagradar as fãs nessa altura da carreira? Renegar o passado de conquistas sexuais? Religiosidade em excesso?
“A questão principal é financeira. Ele tem uma visão patrimonialista da história. Ele disse textualmente: “A minha história é um patrimônio meu”. Ou seja, assim como ele possui carros, iates, imóveis, acredita que teria posse exclusiva também sobre a sua ‘história’, algo imaterial e construído coletivamente. Por isso, no processo contra mim, ele reclama muito de o autor “estar ganhando dinheiro com a história dele”. Além disso, ele quer contar uma versão única da história, a oficial, sem conflito ou contradições – como naquele recente episódio do filme de Tim Maia. Na adaptação da TV Globo, Roberto apareceu falando que ele e Tim nunca brigaram. Foi meu livro que revelou aquela cena de um assessor dele humilhando Tim com uma nota de dinheiro jogada no chão.”
Nos novos capítulos que você pretende acrescentar ao livro existe alguma revelação bombástica da vida de Roberto Carlos?
“As grandes revelações de meu livro são sobre a trajetória artística de Roberto Carlos. A sua vida pessoal está exposta na mídia há 50 anos. Ao longo desse tempo, as alegrias, paixões, dramas e obsessões do cantor foram revelados ao público através de revistas, jornais, TVs, e das próprias músicas dele. O acidente no qual Roberto perdeu uma perna, por exemplo, é narrado na sua canção “O Divã”, que diz: “Relembro bem a festa, o apito / e na multidão o grito / o sangue no linho branco…”. Ele também fala da mãe em “Lady Laura”; do pai, em “Traumas”; dos filhos, em “Quando as crianças saírem de férias”; além das muitas canções em homenagem às suas mulheres, Nice, Myrian Rios e Maria Rita. Roberto Carlos é um cantor autobiográfico e que sempre dividiu sua intimidade com o público.”
Você acha que esse comportamento de Roberto Carlos afetou, de alguma maneira, a imagem que os fãs fazem dele?
“Sem dúvida alguma. Roberto sempre cultivou a imagem de pacifista, ligado às coisas espirituais, falando de paz, de amor, de compreensão entre os homens, além de também se mostrar sensível ao sofrimento dos animais. Porém, episódios como o da Friboi e o da proibição das biografias revelaram um artista intransigente, belicoso, indiferente à causa animal – tanto que ele aparecia sorrindo diante de um pedaço de carne de seres que são exterminados em escala industrial. “Não é possível que você suporte a barra / De olhar nos olhos do que morre em suas mãos”, escreveu ele um dia na letra de “As baleias”. Acho que agora os fãs conhecem um Roberto Carlos para além do mito, um astro demasiadamente humano, com contradições e limitações – como, aliás, qualquer um de nós.”