Angela Ro Ro, desde sempre, pautou a música na sua natureza ingovernável. Com alguns vícios dominados, a saúde em dia e o astral limpo, a cantora, compositora e pianista está em fase de criatividade livre e desimpedida, numa carreira que soube manter com personalidade e sensibilidade romântica.
Angela é a melhor tradução que temos dos roqueiros e blueseiros com mais de quatro décadas a toda, mas é mais que isso: é também eclética no samba, no xaxado e na bossa nova e também uma letrista elegante e irônica. No CD “Selvagem”, produção totalmente autoral em oito anos, há muita dor de amor, mas também muita vontade de viver e, ainda, irreverência. O álbum, feito em parceria com o pianista Ricardo Mac Cord para a Biscoito Fino, em outubro nas lojas, proclama logo de cara: “Sou livre e não adianta/Tentar me cortar a garganta/ Selvagem me sobra coragem/ Para traçar minha própria viagem”. Contra a intolerância religiosa, Ro Ro cutuca com a música “Parte com o capeta”; contra a sofrência exagerada, ela declara em “O que me resta”: “Se eu já não consigo entender você/E sinto que só sirvo para aborrecer/Melhor então seguir viagem”.
Tem também a inspirada “Portal do amor”, que começou a ser composta em 1973: uma das partes da harmonia originou o sucesso “Amor, meu grande amor”; outra parte, ela guardou e transformou na nova música, com letra parcialmente em inglês. É visível a sensação, em Angela, de ter finalizado um trabalho bem feito. Daí a vontade da cantora em mostrar o resultado do CD. “Se eu tivesse um patrocínio maravilhoso gostaria de um lançamento nas principais cidades do Brasil, mas mesmo sem grandes patrocínios, é o que eu vou fazer” – e com tudo!
Foto: Alexandre Moreira
Como é ser selvagem depois dos 20 anos (rs)? Você ainda tem o sentimento de ser meio marginal?
“A gente fica com mais experiência em selvageria, a cada ano que passa tem que enfrentar uma selva maior ainda. Solte uma selva dentro da sua cabeça e civilize seu ser humano, ao ponto dele merecer ser um animal. Pode ser mais selvagem do que a violência? No sentido verdadeiro, nu, cru, a selvageria boa é sadia. O mundo ficou globalizado na miséria. Acho mesmo que ser selvagem é uma forma de ser espontâneo”.
Essa onda de politicamente correto é algo que faz você ficar atenta na hora de falar e compor?
“O politicamente correto não é nada correto, nem politico. Com a morte do Hugh Hefner, fundador da Playboy, por exemplo, senti vontade de escrever no Facebook que ele trouxe liberdade sexual ao mundo, mas sabia que seria atacada. Angela Ro Ro, um bocão no mau e no bom sentido (gargalhada). Tudo é para censurar e podar as pessoas”.
A sua aproximação com o samba é só na inspiração ou você já frequentou rodas, escolas de samba etc?
“Aprendi a dançar desde criança com minha mãe, tanto a levar quanto a ser levada. Ela era enfermeira e não teve tempo para ser estrela. Comecei a fazer sambas, bons, do anos 2000 pra cá”.
O que acha da chamada cura gay? Seus pais aceitaram sua homossexualidade com tranquilidade?
“Cura gay? Rsrsrs. Adorei as piadas do Face, o pessoal faz logo uma piada. Todo tipo de coação, repressão, julgamento é uma profunda baixaria e tirania. Meus pais prezaram a vida e prezaram o amor. Aos 13 anos, fui expulsa por lesbianismo, nem sabia o que era isso, mas era o que estava na carta de expulsão do meu colégio de freiras e eu nunca tinha nem dado um beijo. E, logo depois, estava namorando um homem, mas descobrimos que éramos gays. Tanto o papai, que era da Polícia Federal (ajudou a desmontar o Esquadrão da Morte), quanto a minha mãe tratavam as pessoas por igual, jamais com censura ou malícia”.
A linda música “O que me resta” fala de maturidade no amor, mas fala também de “Melhor então é assumir/ Que está escrito em minha testa”. É alguma referência a ser traída?
“É uma referência porque eu idealizei a música do Ricardo Mac Cord, arranjador de todo o CD – metade de todos os arranjos são do Ricardo – são quase 30 anos juntos. Quando ouvi essa balada, pensei no corno ideal – aquele que ninguém vai deixar sozinho”.
Você acha que a sua fase de álcool e drogas roubou alguma coisa da sua vida?
“Se o álcool e as drogas roubaram alguma coisa de mim, devolveram e muito bem. Se eu tivesse filho jamais diria experimenta isso ou aquilo – qualquer coisa que nos intoxica não deve fazer bem. Só de pensar na ressaca violenta, desisto de tomar um porre. Sou relativamente lúcida – o pior é respirar a realidade”.
Fala mais da Ro Ro…
“Sou uma coisa estranha, sou elástica, me sinto sem idade. Sem vergonha, sem dinheiro, sem outras coisas. A libido continua forte, a vontade de aprender continua forte, a vontade de viver, imensa. Esse é meu estado de espírito”.