“Em fevereiro de 1986, todo o Brasil parou. Parou para assistir ao último capítulo de uma novela: “Roque Santeiro”, a de maior audiência da história da Rede Globo. Era uma versão de “O Berço do Herói”, peça escrita por meu pai na década de 60, censurada duas vezes, em forma de peça e, depois, de novela, em 1975, proibida em plena noite de estreia, na Globo. Finalmente, foi ao ar em 1985, após o fim do regime militar, e o último capítulo alcançou um marco: 100 pontos de Ibope. Apesar de surpreendente, não foi o único marco da sua vida.
No ano seguinte, enquanto meu pai comemorava o sucesso de “Roque Santeiro”, eu nasci. Nasci imitando o estilo da viúva Porcina – querendo usar lenços na cabeça e repetindo bordões populares criados por ele. Nasci em uma família alegre por fazer arte, e que me ensinou, acima de tudo, sobre a importância de expressar minhas emoções e opiniões através da arte. Meu pai e minha mãe, a atriz Bernadeth Lyzio, foram meus exemplos.
Nossa maior diversão em família, além de viajar nas férias das novelas, eram as peças e filmes que fazíamos em casa, para, no fim, receber a aprovação do meu pai. Eu escrevia as peças e escolhia o elenco: minha mãe, minha irmã, minhas primas, tias, melhores amigas da escola. Eram encenadas inocentemente, nas festas e jantares que meu pai dava em casa, para convidados, muitas vezes, ilustres. Ele se divertia e tinha muito orgulho de mim. Meus primeiros livros foram comprados por ele em bienais, e outros ganhei de presente do Jorge Amado e da Zélia Gattai, os padrinhos maravilhosos que ele escolheu para mim. Tive a honra de viver por onze anos com o homem mais genial que já conheci. Quando penso sobre ele, às vezes preciso separar o pai do homem que ele era, para entender sua importância.
Dias Gomes não era só meu pai, era um verdadeiro herói brasileiro, diferente de Roque Santeiro. Era o criador de vilões adoráveis e mocinhos hipócritas. Não é exagero dizer que todos os brasileiros reconheciam o País na obra dele. Seus personagens denunciavam, criticavam, comemoravam e enalteciam o povo brasileiro com todos os seus defeitos, qualidades e particularidades. Sempre visionário, desafiador, irônico e bem-humorado, meu pai tinha o dom de enxergar o Brasil perfeitamente como era, ou melhor, como ainda é até hoje. Sua obra vasta é um retrato atemporal deste país, onde ele nasceu e viveu por 76 anos. “O Pagador de Promessas”, por exemplo, foi o primeiro filme brasileiro indicado ao Oscar, e o único brasileiro e sul-americano a vencer a Palma de Ouro em Cannes.
Dentro de quatro anos, vamos comemorar 100 anos de um dos mais importantes dramaturgos, membro da Academia Brasileira de Letras. A caminho dos 100, eu e minha família recebemos a emocionante e grandiosa notícia de que Dias Gomes será o enredo da Unidos de Padre Miguel, no Carnaval de 2019. Seus personagens, aqueles que representam o Brasil até hoje, serão homenageados na maior festa do Brasil e maior espetáculo da Terra. O enredo, reconhecendo sua obra imortal, fala que “qualquer semelhança não terá sido mera coincidência.” Difícil explicar a emoção de ter um pai que dá tanto orgulho e que, apesar de não estar mais entre nós, continua tão presente, diariamente.
Em nome da família, agradeço à Unidos de Padre Miguel. Meu pai era ateu, mas conhecia e falava sobre religião como um verdadeiro religioso. É irônico e perfeito pensar que ele provavelmente vai assistir a essa grande festa na Sapucaí, no camarote lá de cima.”
Mayra Dias Gomes é escritora. Foto: Maxine Bowen